Duas tempestades sobre Joe Biden (Por Marcos Magalhães)
Nem sempre o dinheiro e o poder militar são suficientes para enfrentar ameaças
atualizado
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Correram o mundo as imagens de um presidente Joe Biden cabisbaixo e triste, durante pronunciamento à imprensa. Ele apoiava o queixo sobre uma pasta preta, como se buscasse consolo para as mortes de americanos e afegãos em atentado suicida contra o aeroporto de Cabul.
De sua boca saíram promessas de vingança contra os terroristas que aproveitaram o momento de retirada do país de estrangeiros e de afegãos com vistos estrangeiros para atacar. Mas em seus olhos se via muita tristeza. E sua expressão era a de um homem cansado.
Os cabelos brancos de um Biden aparentemente acuado pareciam indicar o envelhecimento de todo um país. E ele já sabia ali que teria pela frente momentos mais difíceis antes do fim do dia 31 de agosto, data acertada com o novo governo talibã para evacuar a capital afegã.
Forças americanas interceptaram cinco foguetes direcionados ao aeroporto na véspera do deadline. E ninguém poderia dizer ao certo o que aconteceria com milhares de pessoas que ainda buscavam o aeroporto, por onde 114 mil estrangeiros e afegãos já haviam deixado para trás o pesadelo em que se transformou o país nas últimas semanas.
As explosões e mortes no aeroporto de Cabul já seriam motivos suficientes para alimentar a tristeza de Biden, a quem coube a decisão de retirar as tropas americanas do Afeganistão, depois de 20 anos de ocupação e de uma guerra que será questionada pelos futuros historiadores.
Mais perto de casa, porém, o presidente americano encontraria ao mesmo tempo novos motivos de preocupação. O estado de Louisiana foi atingido no domingo por um furacão que atingiu velocidades próximas de 200 quilômetros por hora.
O furacão Ida tem sido considerado o quinto mais forte da história a atingir o território dos Estados Unidos. Além das enchentes que provocou, mais de um milhão de pessoas ficou sem energia elétrica. E as estradas ficaram cheias de novos refugiados – aqueles que precisam deixar suas casas, mesmo que temporariamente, por causa de desastres climáticos.
Influência
A retirada das tropas americanas e a dificuldade em garantir a retirada pacífica de cidadãos afegãos e estrangeiros amedrontados pela volta dos talibãs ao poder motivaram muitos debates sobre o declínio da influência dos Estados Unidos no mundo.
Era mais um passo da decadência americana, escreveram muitos analistas. O que viria a abrir mais espaço à ascensão da potência emergente, a China – que, aliás, tem emitido sinais em defesa da convivência pacífica com o novo regime talibã.
Os dois movimentos – decadência de uma potência e ascensão de outra – podem mesmo estar em andamento, ainda que sejam mais lentos do que acreditam os afoitos. Os Estados Unidos continuarão a ser poderosos por muitos anos.
Mas será mesmo que a competição entre as potências pode explicar plenamente o que acontece hoje no mundo? A busca pelo sentido correto dos ventos do poder seria realmente a tarefa mais importante dos observadores internacionais?
A procura por ganhadores e perdedores parece, de fato, acompanhar a natureza humana. A disputa pelo poder mundial encanta audiências e leitores, mesmo que envolva atualmente apenas dois países. Dois países que impressionam o resto do mundo pelo tamanho de suas economias e pela potência de seus exércitos.
Nem sempre, porém, o dinheiro e o poder militar são suficientes para enfrentar ameaças. Já vai longe o tempo em que exércitos nacionais organizados enfrentavam uns aos outros em campos de batalha. As guerras tradicionais estão fora de moda.
Quando estão em campo, as forças militares das maiores superpotências dos últimos tempos nem sempre saem vitoriosas. Basta lembrar do que aconteceu com a União Soviética no mesmo Afeganistão. A geografia montanhosa do país asiático certamente ajuda a explicar a vitória de guerrilheiros, como os talibãs. Mas há outros fatores em jogo.
A união do extremismo político com um certo fundamentalismo religioso tem alimentado a instabilidade e o terrorismo. As vítimas não estavam apenas em Nova York, naquele dia 11 de setembro. Atentados terroristas já se multiplicaram por cidades, como Londres, Paris e Madri.
Pequim até o momento foi poupada. Mesmo o poderoso governo chinês, porém, sabe dos riscos que corre. Por isso, mantém forte controle sobre o noroeste do país, para evitar o contágio do extremismo em seu território. A atitude do governo central em relação à minoria uigur tem motivado fortes reações de ativistas de direitos humanos no Ocidente.
Fronteiras
As grandes potências conseguem, naturalmente, exercer maior influência sobre outros países e definir normas internacionais que favoreçam seus interesses. Ou seja, o poder nacional continuará a ser importante como sempre o foi.
É preciso observar, porém, que os Estados nacionais, por mais poderosos que sejam, não são mais tão capazes quanto no passado de superar, sozinhos, os desafios que lhes são impostos.
O terrorismo é apenas um exemplo. Os ventos que agitam Louisiana demonstram que há desafios pouco convencionais cada vez mais poderosos às populações de todo o mundo – inclusive das nações mais ricas na América do Norte e na Europa.
A questão climática veio para ficar. Muitos habitantes da região sul dos Estados Unidos, entrevistados nos últimos dias por redes internacionais de televisão, relataram que as preocupações com furacões e enchentes se tornam cada vez mais frequentes em suas vidas.
As ondas de calor no verão do Hemisfério Norte também têm levado aos países mais ricos cenas que antes eram comuns apenas em regiões mais quentes e menos desenvolvidas. Grandes secas e incêndios florestais têm afetado milhões de pessoas nesses países.
Da mesma forma, a pandemia tem demonstrado pouca atenção às fronteiras nacionais. Ainda que os países mais pobres estejam bem menos protegidos pelas vacinas, em mais um retrato da grande desigualdade mundial, mesmo as populações dos países mais ricos estão vulneráveis por causa de variantes do vírus e, principalmente, pelas iniciativas de resistência à vacina.
O negacionismo em relação à pandemia foi alimentado por outro movimento transnacional – o da radicalização política a partir da extrema direita, especialmente norte-americana.
Para o cientista político Francis Fukuyama, essa radicalização política pode ser mais prejudicial para Washington do que a desastrada operação de saída do Afeganistão, por exemplo.
“O desafio maior para a posição global dos Estados Unidos é doméstico”, escreveu Fukuyama em artigo publicado pela revista inglesa The Economist. “A sociedade americana está profundamente polarizada, e é difícil haver algum consenso em praticamente tudo”.
Os múltiplos desafios que aguardam um líder como Joe Biden podem mesmo motivar a perplexidade que ele demonstrou em frente às câmeras de televisão. E aferir o grau de decadência norte-americana pelo vazio de seu olhar pode ser, de fato, inspirador aos que percebem o mundo segundo a ótica de ganhadores e perdedores.
Mas a realidade é um pouco mais complexa. E vai exigir não apenas de Biden, como dos principais líderes mundiais, muito mais cooperação do que competição.
Marcos Magalhães escreve no Capital Político. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.