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Domingo a gente não tinha nada para comer (por Tânia Fusco)

O Brasil, desanda no quesito responsabilidade social

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Hugo Barreto/Metrópoles
Fome
1 de 1 Fome - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Assim dona Janete Evaristo expôs sua fome na TV. Moradora de Andaraí, no Rio de Janeiro – viúva, desempregada, responsável por cinco pessoas – era mais um na fila de um dos programas que distribuem refeições aos muitos que, hoje, têm fome e não têm o que comer. Fez chorar a repórter que a entrevistava. E fez chorar quem soube ou viu a cena na TV.

Deveríamos falar mais, falar muito sobre a fome. Ela é visível. Tem cara e corpo, magro e triste. É parte do cotidiano de todos que se movimentam por ruas, praças, parques, estradas, becos, favelas.

O pintor de paredes traz na marmita arroz, um pouco de feijão, ovo. Às vezes, só arroz e feijão – pouco.

A diarista, agradece o prato bem servido. Olha e faz o pedido. Posso levar um pouco pra janta da minha filha?

Cabeça baixa, explica. To quase sem nada em casa. O da mão pra boca ta cada vez mais curto, menor. Há humilhação na confissão da carência.

Como não sentir essa dor tão perto?

São trabalhadores que, ainda que tenham serviço remunerado, por ele não recebem mais o suficiente para ter a certeza da comida do dia seguinte.

Como dona Janete do Andaraí, país afora, 33 milhões de brasileiros sofrem a dor, a angústia da fome. Quase 7% desses vivem no estado Rio de Janeiro. O que significa, ali, hoje, há 1,2 milhão de famintos.

Há gente por trás dos números e dos percentuais. São pessoas, com a diária necessidade básica e fundamental de comer. Muita gente. Pouca comoção com a tragédia desses tantos sem comida no país que produz e exporta muito alimentos.

O Brasil, desanda no quesito responsabilidade social.

Não há decreto de sigilo que esconda a fome no Brasil de agora. Anos e anos para reduzir essa vergonha. Pouco tempo para tirar prato cheio da mesa de 1/5 dos brasileiros.

Há fome no mundo. A pandemia agravou. Sim. Mas, no Brasil, antes da pandemia, a fome já ganhava fôlego.

Nos derradeiros 10 anos, a insegurança alimentar galopou na direção de 58% da população brasileira. Gente de carne e osso que, em algum grau, convive com falta de alimentos. Leve, moderada ou grave, de novo, a fome retornou ao cotidiano da população brasileira.

A fome é uma indignidade. Permitir seu avanço é desumano.

O Brasil oficial de 2022 não tem envergonha pela fome de milhares. Não tem piedade.

O Brasil oficial, com apoio de 20% da população, prega o retorno do Deus, Pátria e Família – aí só cabendo o seu modelo de Deus, de pátria e de família.

Na arrogância de suas certezas, além de promover e embalar a fome, insistem em tomar direitos expressos na Constituição.

Loura, bela e arrogante, a juíza nega direito ao aborto a uma criança estuprada.

Na mesma semana, desumana inconsequência de muitos, expõe a vida e a dor de outra mulher estuprada – jovem atriz, de 21 anos, que, em silêncio, carregou o drama da gravidez advinda do abuso.

E Klara Castanho, a atriz, foi mais uma vez estuprada. Agora em praça pública e por duas mulheres – uma enfermeira, uma youtuber. Zero sororidade. Compaixão nenhuma. Máxima e inconsequente invasão de privacidade.

Dali pra frente, Klara, exposta em postas, foi mais notícia do que a fome. Sem direito a decreto oficial de sigilo – esse que costuma oferecer esconderijo de largo tempo aos mal-feitos de pequenas e grandes autoridades da República atual.

O Brasil real tem fome de comida, de respeito humano. De luz e lucidez. O Brasil oficial carece de vergonha moral.

 

Tânia Fusco é jornalista

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