Dezembro de 1989. Collor massacra Lula no JN (Por Ronald de Carvalho)
Sobre a edição do debate que marcou a história da primeira eleição para presidente depois do fim da ditadura militar de 64
atualizado
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A manhã daquele 15 de dezembro de 1989 estava mais amena do que os tórridos dias de fim de primavera no Rio de Janeiro. O sol já ia alto quando acordei naquela sexta-feira. O debate entre Fernando Collor e Lula, na véspera, varara a madrugada e o cansaço me fez perder a hora.
Quando cheguei à TV Globo, o compacto do debate para o Jornal Hoje já tinha sido feito. Wianey Pinheiro, o Pinheirinho, modesto na estatura e robusto em experiência, já havia editado o material bruto. Disciplinado, mostrou-me a edição.
Pinheirinho é uma dessas pessoas que deixam seu comportamento profissional ser contaminado pela paixão política. A edição do debate para o Jornal Hoje estava maquiada para amenizar o fraco desempenho de Lula.
O debate da noite anterior havia sido um massacre. Collor, do alto de sua destreza na farsa, triturou o candidato do PT e com grosseira ironia expôs sua fragilidade no campo das ideias e no domínio da palavra.
O sorteio que determinou as regras do debate estabeleceu quem o abriria e quem o encerraria. Coube a Lula dar a última palavra que ficaria como a declaração final dos candidatos na véspera da eleição. Era uma oportunidade de ouro que Lula jogou pela janela.
“Fui chamado a debater com uma pessoa que diz que é caçador de marajás. Descobri que meu concorrente não passa de um caçador de maracujá”, disse então.
Com esse humor tosco, Lula encerrou sua campanha e ofereceu sua última palavra àqueles que votariam no dia seguinte para escolher, pelo voto, depois de décadas, o Presidente da República.
O uso das aspas é impreciso na frase acima pois não tenho gravado ipsis verbis as exatas palavras de Lula. O que interessa é que a imaginosa metáfora do caçador de maracujá é absolutamente verdadeira.
A edição de Pinheirinho não refletia o flagrante desequilíbrio entre os candidatos. Não conseguia destacar os pontos baixos de Collor. Mas com o esmero de um militante fiel, ele garimpou o que de menos ridículo foi dito por Lula. Enfim, uma edição sem sabor, odor, talento e brilho.
Perguntei a Pinheiro se ele já havia submetido o VT à Alice-Maria, Diretora-Executiva de jornalismo. Não pude interferir, pois a resposta foi a de que a edição tinha sido aprovada com louvor e que deveria ir ao ar daquela forma.
Alice é dessas pessoas que a natureza premiou com uma coluna vertebral flexível e um caráter líquido que se adapta facilmente à forma dos recipientes. Presumi que se ela havia aprovado a edição de Pinheirinho era porque alguém a autorizara a fazê-lo. A edição no Jornal Hoje foi exibida e a história mostrou que havia algum ruído no ar.
Alice imediatamente me chamou e disse que recebera uma opinião de que a edição de Pinheirinho do debate estava parcial e que eu deveria reeditá-la para o Jornal Nacional. Pediu-me equilibro e, sobretudo, o cuidado de refletir o peso exato que cada candidato havia tido no debate.
Fui para a ilha de edição e, na presença de Otávio Tostes e de um editor de imagem que não recordo o nome, comecei o trabalho para o Jornal Nacional. Faz quinze anos que editei o compacto do debate entre Collor e Lula. Faz quinze anos que, todas as vezes que lembro daquele dia, tenho a plena convicção de que repetiria o que fiz, exatamente como foi feito na ilha 4 da Central de Jornalismo da TV Globo. Não mudaria uma imagem, não alteraria nenhuma sonora, não suprimiria um frame sequer.
Diferente do julgamento que as pessoas fazem dos fatos embaçados pelo tempo, não tenho dúvidas de que a edição que executei para o Jornal Nacional estava rigorosamente correta. Como critério de escolha dos trechos que usaria, utilizei a imagem mental do trabalho de compactação de um jogo de futebol.
Estava diante do desafio de resumir, em imagens e sonoras, um Fla-Flu em que o Flamengo goleara o Fluminense por 5×1. Teria que captar os melhores momentos do jogo, as bolas em gol, as jogadas perigosas, os dribles e a catimba.
Tudo deveria ser feito de maneira tão criteriosa que o espectador, que não tivesse visto o espetáculo, pudesse ter a nítida noção de quem perdera o jogo, de quem o ganhara e quais as jogadas que haviam decidido a partida. O compacto do debate deveria mostrar o massacre de um e a indigente postura defensiva do outro.
Faz quinze anos que tenho a absoluta certeza de que aqueles que viram o Jornal Nacional do dia 15 de dezembro de 1989 tiveram o retrato fiel do que havia acontecido na véspera.
Muito tem sido escrito até hoje sobre a edição desse debate.
A maioria dos textos reflete o relato apaixonado de quem condena antes de julgar. Mario Sergio Conti, em seu livro “Notícias do Planalto”, afirma ter ouvido mais de uma centena de depoimentos. Dedica-me umas tantas muitas linhas. Lamentavelmente não fui ouvido por ele. Louvo a capacidade mediúnica do autor que, sem me ouvir, reproduz entre aspas longos trechos de diálogos atribuídos a mim.
Conti é um homem honrado. Conti não mente. Seguramente estamos diante de um gênero ficcional de jornalismo que minha incultura e inexperiência profissional não percebem.
Agora detenho-me no livro recém-lançado “Notícia Faz História” onde a TV Globo fala dos 35 anos do Jornal Nacional. Também não fui ouvido, mas no caso dou o benefício da dúvida. Afinal, fiz uma gravação de mais de uma hora para um projeto de memória da TV Globo. Espero que esse depoimento tenha servido de base para minha participação no livro. Entretanto, outras pessoas falaram.
Destaca-se o depoimento de Alice-Maria onde afirma que “aquela matéria mudou a história do telejornalismo da Globo”. Aquela matéria seguramente “mudou a história da jornalista da Globo”. A tibieza e indecisão se tornaram marcas do final dessa novela.
Na tarde daquela sexta-feira de 1989, fora o alto comando da Central Globo de Jornalismo, não havia um superior imediato a quem pudesse me reportar. O diretor de telejornais de rede, Alberico Souza Cruz, permanecia em São Paulo desde a véspera. Havia dois dias que não falava com Alberico. Como faltava o superior com quem pudesse dividir responsabilidades, o jeito foi despachar direto com Alice.
Sabia que era uma escolha tortuosa e temerária. Por falta de sensibilidade política, Alice-Maria sempre preferiu julgar o material jornalístico pelos adereços da forma e não pela consistência do conteúdo. Mas não havia jeito. Era com a Alice que deveria aprovar a edição do Jornal Nacional.
– Por favor, não quero nem ver. Se você fez, deve estar bem feito. Desce com essa fita e bota no ar. Não vou dar palpite.
Foi assim que Alice autorizou a exibição do compacto do debate entre Collor e Lula.
Surge no livro sobre os 35 anos do Jornal Nacional um depoimento novo. O jornalista Otávio Tostes se contorce em culpa pela edição do debate. Otávio, que até hoje nunca tinha aparecido nessa ciranda, poderia aliviar sua angústia ao se lembrar de que, em todo o episódio, foi apenas um coadjuvante, assim como o tal editor de imagem. Otávio foi um pequeno figurante sem fala no texto da peça.
Diz-se que na edição do debate Collor teve mais tempo do que Lula. Sinceramente não lembro de nenhuma intenção que tenha determinado tal diferença. É possível que na operação de escolha das sonoras possa ter havido algum descompasso entre os tempos.
No momento da edição isso era irrelevante.
O que interessava era o conteúdo do que fora dito e não o seu tamanho. Quem faz jornalismo sabe que importância de notícia não se mede pela régua nem pelo cronômetro. Há informações devastadoras que podem estar contidas em cinco linhas ou apenas em uma frase.
Há sempre um instante na vida em que podemos refletir sobre os erros e confessar os fracassos. Tenho a coragem de reconhecer que na edição do compacto cometi deliberadamente um erro. Mudei a fala de Lula no encerramento do debate.
Entre Lula e Collor, não tinha preferências, mas guardava antipatias. Conhecia Fernando Afonso Collor de Mello de outros carnavais e me constrangia ver o massacre que ele impôs a Lula durante o debate. Essa foi a razão do meu pecado. Conscientemente impedi que Lula encerrasse o debate com a ridícula referência ao caçador de maracujá.
Substituí a sonora, e a edição que foi ao ar não documentou com exatidão a última mensagem de Lula ao seu eleitorado na véspera da eleição. O trecho que fazia referência ao caçador de maracujá foi trocado por uma trivialidade qualquer menos banal. O erro jornalístico do editor conferiu um pouco mais de solenidade ao discurso final de Lula.
A partir da noite de sexta-feira, 15 de dezembro de 1989, a vida continuou serena. Nenhuma crítica dos superiores, nenhum motim na redação, nenhuma alteração na rotina da apuração dos votos da eleição. Pinheirinho não cortou os pulsos, Otávio Tostes não se deprimiu, a redação não me hostilizou. Apenas um pranto quebrou o silêncio. Alice-Maria chorou.
Armando Nogueira, a quem a vida empalidece os defeitos e realça as virtudes de poeta e de grande repórter, perguntou quem me autorizara a mudar a edição feita por Wianey Pinheiro para o Jornal Hoje. Quando soube de quem partira a orientação, chamou Alice para conversar.
Assumo inteira responsabilidade por esse relato e pelas verdades que ele contém. Armando Nogueira, Alberico Souza Cruz e a família Marinho não tiveram qualquer participação nos fatos que fizeram ir ao ar no Jornal Nacional o compacto do debate entre Collor e Lula da maneira como o editei. Guardo a certeza de que se voltasse no tempo, faria tudo de novo exatamente como fiz.
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Collor x Lula: quem deu a ordem a Alice Maria?
O depoimento do jornalista Ronald de Carvalho sobre a edição do debate Collor x Lula em dezembro de 1989 deixa uma pergunta no ar: quem teria dado ordem a Alice Maria, na época Diretora-Executiva de jornalismo da TV Globo, para que a edição do debate apresentada no jornal Hoje fosse refeita para ir ao ar à noite no Jornal Nacional?
Ronald se refere assim ao episódio:
“Alice imediatamente me chamou e disse que recebera uma opinião de que a edição de Pinheirinho do debate estava parcial e que eu deveria reeditá-la para o Jornal Nacional.”
Perguntei há pouco a Ronald quem deu a ordem a Alice Maria. Ele me respondeu:
– Alice me disse que recebeu a ordem diretamente de João Roberto Marinho.
João Roberto é um dos filhos do jornalista Roberto Marinho e vice-presidente das Organizações Globo.
Aproveitei para perguntar por que só agora, depois de 15 anos, ele, Ronald, decidira quebrar seu silêncio a respeito do episódio. Resposta dele:
– Porque nunca ninguém antes se interessou por me ouvir.
(Publicado aqui em 1º de setembro de 2020)