De que me serve espernear a dizer que “só” tenho 69, se 69 já é muito mais do que eu escolheria ter, caso me fosse dado escolher?

Foi quando dei comigo a protestar que ainda não tinha 70 anos, não senhora, mas apenas 69, que percebi que tinha sido engolido por uma jibóia.

A jibóia só nos engole dois centímetros por ano e a princípio, quando somos catraios, parece pouquíssimo.

Mas o que conta – o que, literalmente, mata – é a progressão.

Posto de uma forma imediata: de que me serve espernear a dizer que “só” tenho 69, se 69 já é muito mais do que eu escolheria ter, caso me fosse dado escolher?

E de que me serve festejar loucamente o “ainda” não ter 70, se esse “ainda” já se está a rir atrás dos meus dentes, sabendo muito bem que, num abrir e fechar de olhos, passa um aninho e eis-me, de repente, em julho de 2025, a braços com os 70 aninhos que tanta energia despendi a jurar que não tinha?

À medida que caía a chuva, fui percebendo o erro de me vincular a uma jibóia progressiva que vai dos zero anos aos anos da nossa morte, avançando seguramente um ano de cada vez. De que me serve dizer que não tenho 80 anos se, não tarda nada, vou ter 80 anos – e isso, com supremo humor negro, se tiver sorte?

A jibóia consola-nos por não termos “ainda” mais um ano ou dez de idade do que já temos, mas é apenas uma questão de tempo, porque é para lá que caminhamos.

No fim da jibóia, morremos: somos engolidos por completo e, se a tripa do monstro nos favorecer, somos distraidamente cagados, reaparecendo na forma de caganitas de memória.

Agora percebo o que diziam os velhos actores, quando lhes perguntavam a idade: “Isso é coisa a que um actor não pode responder, porque amanhã posso ser chamado para fazer o papel de um jovem personagem.”

Se tiver 20 anos, não caia na asneira de dizer que só tem 20: isso vincula-o à jibóia e todos os anos, mal chegue aos 50, acrescentarão um anel da jibóia à sua proximidade da morte, rematando sempre com um: “É que já não tens 20 anos.”

Desvincule-se já. Em vez da idade, passe a dar o número de sócio da União Zoófila – e mande-os acasalar.

(Transcrito do PÚBLICO)