Como matar alguém de forma limpa? (Por Pedro Guerreiro)
Notas made in USA sobre a vida americana
atualizado
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Fascinantes os desafios com que a tecnologia e a política modernas se confrontam. Como lidar com a rápida evolução da inteligência artificial? Como prevenir a próxima pandemia e travar o avanço das bactérias multirresistentes? Como levar a cabo uma transição energética sem prejuízos económicos e sociais? E a habitação? E o combate à desinformação?
Mas depois há outras questões que parecem nos fazer recuar à Idade Média. Aqui, nos Estados Unidos, prossegue o debate sobre como é que se pode executar um preso de forma razoavelmente humana, limpa e silenciosa. Há 27 estados norte-americanos que continuam a prever a pena de morte (ainda que em oito destes vigorem moratórias), para além da justiça federal e da militar.
A última semana foi particularmente mortífera, com cinco execuções em cinco estados e a ser atingida a marca das 1600 pessoas executadas nos Estados Unidos desde 1977, um ano depois de o Supremo Tribunal ter reinstaurado a pena de morte. Desde então, a esmagadora maioria dos condenados morreu por injeção letal, com a opção pela cadeira elétrica, a câmara de gás e o enforcamento a cair em desuso devido ao sofrimento causado. Mas os estados norte-americanos têm tido cada vez mais dificuldades em obter as substâncias utilizadas nas injeções letais devido ao boicote das farmacêuticas internacionais. O obstáculo gerou uma macabra procura por métodos alternativos de execução.
Há agora cinco estados que podem recorrer a pelotões de fuzilamento (Idaho, Utah, Carolina do Sul, Mississippi e Oklahoma) e um sexto (o Tennessee) onde esta hipótese está a fazer o seu percurso legislativo. A morte a tiro “é muito mais instantânea e muito menos dolorosa”, argumentou em 2021 um dos autores da medida na Carolina do Sul, o senador estadual democrata Dick Harpootlian. Os seus opositores, contudo, alertam que a morte não é instantânea nem indolor, podendo em teoria o condenado sobreviver momentaneamente a uma salva de tiros, pelo que o castigo cai na categoria do “cruel e invulgar” que tanto a constituição americana como a Declaração Universal dos Direitos Humanos proíbem.
Surgiu então, já este ano, a opção pela inalação de azoto, uma “alternativa humana”, como alegam os seus proponentes, que priva o corpo de oxigénio e causa uma morte supostamente rápida e indolor. O estado do Alabama foi o primeiro a aplicar o método, mas os resultados não têm correspondido às expectativas.
Em janeiro, Kenneth Smith foi a cobaia involuntária do novo método. Imobilizado numa maca e com uma máscara no rosto, o condenado por homicídio ter-se-á contorcido e tremido em sofrimento durante cinco minutos e a sua morte só foi declarada cerca de 20 minutos depois. Há dias, também no Alabama, Alan E. Miller tornou-se no segundo condenado executado com azoto. Também desta vez, o preso contorceu-se e agitou-se durante vários minutos até morrer.
Se a perspectiva de submeter alguém a uma morte desnecessariamente desumana e dolorosa não fosse suficientemente pavorosa, eis uma hipótese estarrecedora: a de executar um inocente.
Na semana passada, a justiça japonesa absolveu um homem de 88 anos que tinha sido condenado à pena de morte em 1968 por um quádruplo homicídio. Iwao Hakamada era, em todo o mundo, o indivíduo há mais tempo num corredor da morte, concluindo-se agora que tinha sido injustamente condenado através de provas fabricadas e de uma confissão arrancada sob tortura.
Hakamada teve a “sorte” de o Japão manter os seus condenados por períodos recorde de tempo à espera da execução, que acontece quase sem aviso prévio. No seu caso, esperava há já 56 anos, o tempo que levou até que a justiça japonesa assumisse o seu erro.
Já no caso de Marcellus Williams, um dos cinco norte-americanos executados na semana passada, a justiça do estado do Missouri decidiu não dar relevo às muitas dúvidas em torno da sua condenação. Aos 55 anos, Williams tinha passado 23 à espera da morte, enquanto os seus advogados e a organização The Innocence Project pediam a sua exoneração até ao último segundo, apontando erros na realização de perícias, suspeitas de racismo dos magistrados e a falta de credibilidade de duas testemunhas-chave que tinham resultado na sua condenação, em 2001, pela morte de Felicia Gayle – cuja família já tinha até mostrado que via com bons olhos a comutação da sentença em prisão perpétua. Morreu na terça-feira, por injeção letal, sem que tivessem sido cabalmente afastadas todas as dúvidas razoáveis em torno da sua culpa.
As eleições presidenciais norte-americanas de novembro não deverão trazer novidades neste campo. O Presidente Joe Biden, ainda na Casa Branca, tinha feito campanha pela abolição da pena de morte, mas não fez mais que suspender as execuções em casos federais, sem cumprir a promessa de acabar com a punição. A sua vice-presidente, Kamala Harris, que durante muitos anos se opôs publicamente à pena de morte, mantém-se em silêncio sobre o assunto nesta campanha, no quadro de uma viragem mais vasta ao centro que disputa com Donald Trump (não que este se tenha moderado, atenção).
O candidato republicano, esse, é um vocal defensor da pena capital e já prometeu que irá lutar pela sua aplicação num leque maior de crimes, desde o tráfico de droga até às fugas de informação. Há um ano, a Rolling Stone citava fontes da campanha republicana sobre o que Trump pensa sobre o assunto: multiplicar pelotões de fuzilamento, recuperar o enforcamento e talvez mesmo a guilhotina, e, porque não, divulgar vídeos das execuções para dissuadir potenciais criminosos.
Em novembro, até a morte vai a votos.
(Transcrito do PÚBLICO)