Chile começa a definir o futuro (por Marcos Magalhães)
Derrotado nas urnas, após uma ascensão meteórica, o ultraconservador José Antonio Kast foi dar os parabéns a Gabriel Boric
atualizado
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Brasília, 30 de outubro de 2022. Uma hora e meia depois do início da contagem dos votos em segundo turno, o presidente da República reconhece a vitória de seu oponente de esquerda e decide ir pessoalmente à sede do comando da campanha adversária para cumprimenta-lo e desejar-lhe boa sorte em seus quatro anos de mandato.
Uma cena equivalente ocorreu em Santiago na noite do último domingo. Derrotado nas urnas, após uma ascensão meteórica, o ultraconservador José Antonio Kast foi dar os parabéns a Gabriel Boric, de 35 anos, pelos 55% dos votos que lhe deram o direito de tornar-se, a partir do ano que vem, o mais jovem presidente da história do Chile.
Em seguida foi a vez de o presidente Sebastián Piñera, igualmente conservador, conversar por videoconferência com Boric e convidar o presidente eleito para um encontro no dia seguinte no palácio presidencial de La Moneda, que há 48 anos foi bombardeado por tropas ligadas a Augusto Pinochet no golpe de Estado que derrubou o socialista Salvador Allende.
“Essas iniciativas demonstram o espírito cívico que corresponde à tradição republicana de longa data do Chile”, disse ao Capital Político o embaixador chileno Fernando Schmidt Ariztía. “O que nos orgulha é que as eleições foram impecáveis”.
Moderação
Nada mal para um pleito muito polarizado que ocorre dois anos depois da eclosão de uma onda de manifestações nas ruas de Santiago por melhores serviços para a população chilena, especialmente nas áreas de saúde e educação.
Por suas posições ultraconservadoras, Kast era visto como uma espécie de versão chilena de Jair Bolsonaro. Falava de temas como imigração e segurança e chegou a defender a construção de uma barreira na fronteira com o Peru. Dizia, com orgulho, que seria o candidato de Pinochet se o general ainda estivesse vivo.
Mas esse pai de nove filhos, contrário ao aborto e a políticas de gênero, que chegou a ter um irmão servindo como ministro no antigo governo militar, distanciou-se de Bolsonaro ao optar por uma postura civilizada logo após as eleições.
Boric, por sua vez, recebeu os cumprimentos de Kast e disse que seria “uma honra” visitar o palácio de La Moneda para dar início ao processo de transição em resposta a Piñera.
Incertezas
Até aqui, a cordialidade serviu para tranquilizar o país e a região. Mas o que vem depois? A pergunta ainda inquieta muitos chilenos, além de investidores estrangeiros e observadores internacionais.
Pouco se sabe ainda sobre o que será o novo governo, que assume sem maioria clara no Congresso Nacional e ainda durante o mandato da Convenção Constituinte, que deverá apresentar o novo texto constitucional para referendo no segundo semestre de 2022.
A Constituinte foi uma espécie de solução negociada para aliviar a tensão social que tomava conta do país. Antes considerado modelo de desenvolvimento na região, com altas taxas de crescimento e acordos de livre comércio com países de todo o mundo, o Chile mostrava ao mundo a sua face de desigualdade.
De fato, ainda neste ano de 2021 deverá ser registrado, após o período mais severo da pandemia, o crescimento de aproximadamente 12% do Produto Interno Bruto. Mas o número não se sustenta. Em 2022 estima-se um crescimento de pouco mais de 2%.
Para combater a inflação de quase 7%, os juros ficaram mais altos, o que tornará um pouco mais difícil a retomada da economia e a criação de empregos de qualidade. Ou seja, o primeiro ano de mandato exigirá bastante do jovem novo presidente chileno.
Na campanha para o segundo turno das eleições, Boric já demonstrou que pretendia se aproximar do centro político, não apenas para ganhar as eleições como para garantir a governabilidade no início de seu governo. Começou pela aparência, trocando óculos e aparando a barba, e chegou à mudança de seu programa de governo, que se tornou mais moderado.
Promessas
O novo presidente, porém, tem promessas a cumprir. Ele precisa atender ao desejo demonstrado nas ruas de um país mais humano e menos desigual. Não terá muito dinheiro disponível, mas pretende inspirar-se no modelo europeu de bem-estar social.
Seu programa de governo prevê o fortalecimento e a expansão da educação pública, “terminando com décadas de abandono e privatização”. Propõe ainda educação integral “para o século 21”, com a oferta de atividades nas áreas de artes, esportes e meio ambiente.
O novo governo buscará ainda a “reconstrução da educação superior pública, gratuita e de qualidade, vinculada às necessidades do país”. A expansão da rede pública, segundo o programa, terá foco em descentralização regional e gênero, priorizando as mulheres em “áreas altamente masculinizadas”.
Na economia, Boric pretende promover “mudanças com responsabilidade fiscal”. Seu programa estabelece apoio a pequenas empresas, imposto sobre grandes fortunas e uma reforma tributária que favoreça o crescimento de uma economia verde.
O tempo dirá o que o jovem presidente conseguirá colocar em prática. Em seu primeiro ano de mandato ele precisará reativar a economia e dialogar com o Conselho Constituinte, que poderá, inclusive, optar por um regime semipresidencialista para o país, com a criação do cargo de primeiro-ministro.
Brasil
Nas relações exteriores, é provável que Boric busque relações mais próximas com os demais países da América do Sul. Seu primeiro ano de mandato coincidirá com o último ano de Jair Bolsonaro. A incompatibilidade política atrai pontos de interrogação no primeiro momento.
Dois fatores, porém, podem dar um empurrãozinho às relações bilaterais. O primeiro é a entrada em vigor, em 25 de janeiro, de recente acordo comercial entre Brasil e Chile, um acordo considerado de nova geração, que inclui temas como o meio ambiente e o fim do roaming dos telefones celulares.
O segundo também está ligado às telecomunicações. Começará em breve a construção, com participação brasileira, do cabo submarino Humboldt, que ligará a América do Sul diretamente a países como Japão e China. Um grande estímulo digital à aproximação do Brasil com a Ásia, por meio de uma parceria renovada com o Chile que se reinventa.
Marcos Magalhães escreve no Capital Político. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.