Chile aposta em independentes e na esquerda (por Marcos Magalhães)
Prefeita eleita de Santiago aos 30 anos, Iraci Hassler é filha de brasileira
atualizado
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Tem mãe brasileira, pai de ascendência suíça e apenas 30 anos de idade a face mais emblemática das eleições do fim de semana no Chile, quando foram escolhidos prefeitos, governadores e os 155 integrantes da nova Assembleia Constituinte.
Eleita pelo Partido Comunista, Iraci Hassler vai administrar Santiago, que durante 17 anos foi sede da ditadura de Augusto Pinochet.
Iraci, em tupi-guarani, quer dizer mãe do mel. As urnas que lhe deram 38,8% dos votos também foram generosas com a esquerda não tradicional e os independentes. Mas levaram um sabor amargo aos partidos que se revezaram no poder desde a redemocratização.
Os resultados foram especialmente duros para a direita do presidente Sebastián Piñera, que não alcançou sequer um terço dos votos que lhe daria poder de veto nas decisões da Constituinte.
“Esperamos que o que ocorre agora em Santiago seja a antessala do que vem pela frente também em nosso país”, disse Iraci ao celebrar a vitória.
Etapas
O futuro próximo a que ela se refere tem duas datas importantes. Em junho começam os trabalhos da Constituinte, convocada após as grandes manifestações populares de 2019 com o objetivo de redesenhar o modelo chileno. E em novembro ocorrerá a eleição do novo presidente do país, cujo mandato coincidirá com a adoção da nova Constituição.
O avanço dos independentes e da esquerda preocupou os investidores. Nas primeiras horas da manhã de segunda-feira, a Bolsa de Santiago havia sofrido uma queda de 9%. A queda está diretamente ligada ao fato de que os partidos de direita não conseguiram alcançar os 33% de votos para a Constituinte. As decisões ali serão tomadas por dois terços dos votos.
“O setor privado tem muitas razões para estar preocupado”, avaliou o economista Sebastián Edwards, da Universidade da Califórnia, ao jornal La Tercera, de Santiago. “A probabilidade de uma Constituição que dê as costas a um sistema capitalista moderno é muito mais elevada”.
O presidente do Chile também manifestou preocupação com os resultados. “Os cidadãos nos enviaram uma mensagem clara e forte, tanto ao governo como a todas as forças políticas tradicionais”, observou Piñera. “Não estamos sintonizando adequadamente com suas demandas e desejos”.
Manifestações
A falta de sintonia começou a ficar mais clara a partir das grandes manifestações ocorridas no país há dois anos. Os chilenos que foram às ruas pediam basicamente maior atenção do Estado na garantia de serviços básicos, como educação e saúde.
A Constituição herdada da ditadura de Pinochet, embora reformada várias vezes, ainda não previa espaço para essa maior atuação do Estado. Por isso, a população foi consultada para decidir se deveria ser convocada uma Constituinte. Em outubro do ano passado, 80% dos chilenos que foram às urnas aprovaram a iniciativa.
As regras foram inovadoras. Haveria paridade nas vagas entre mulheres e homens. E 17, dos 155 assentos, foram reservados a representantes de comunidades indígenas. Os constituintes terão nove meses para redigir o novo texto, com possibilidade de prorrogação por mais três meses.
A participação foi baixa. Pouco mais de 40% dos eleitores foram às urnas. Entre as surpresas dos resultados está a representação mais jovem desde a redemocratização: idade média de 45 anos.
A paridade de gênero funcionou bem: 79 mulheres foram eleitas, juntamente com 76 homens. E a maior surpresa: os partidos tradicionais ficaram com apenas 54% dos votos.
Os independentes ficaram com 48 representantes. O bloco de direita, ligado ao atual governo, obteve 37 assentos. A oposição moderada elegeu apenas 25 representantes e foi ultrapassada por grupos de esquerda como o Partido Comunista e a Frente Ampla, que conseguiram eleger 28 representantes.
Em outras palavras, não haverá um claro grupo majoritário na Assembleia Constituinte, o que torna difícil prever como ficará o texto final. Como os independentes se inclinam mais à esquerda, pode-se apostar em uma Constituição que torne mais claro o papel do Estado em relação às questões sociais.
Incerteza
Os resultados também provocaram incerteza sobre o futuro político do Chile. Se a direita de Piñera pode ser considerada a grande derrotada das eleições do último fim de semana, a esquerda moderada também foi castigada nas urnas.
Esses dois movimentos terão certamente efeitos no processo de elaboração da nova Constituição. E poderão provocar novas ondas de mudança nas eleições presidenciais deste ano. Eleições para as quais ainda não há claros favoritos.
O Chile já foi visto como modelo por diferentes grupos políticos em diferentes momentos. O ministro brasileiro da Economia, Paulo Guedes, se derrete em elogios à condução liberal da economia durante o governo Pinochet. Quis implantar no Brasil um modelo previdenciário inspirado no adotado pelo general.
A centro-esquerda brasileira também se inspirou em líderes como a ex-presidente socialista Michelle Bachelet, que procurou dar um rosto mais humano ao modelo chileno de economia aberta ao mundo.
Os chilenos parecem estar em busca de algo diferente. A Constituinte deve deixar no passado o modelo de Estado mínimo herdado de Pinochet. O poder deverá ser descentralizado, garantindo maior autonomia aos governos locais. O sistema de governo estará em debate. E provavelmente o governo nacional terá de assumir um papel mais decisivo em temas como educação e saúde.
Piñera foi o primeiro a admitir que os partidos tradicionais receberam um duro recado das urnas. Mas é difícil prever quem será escolhido para sucedê-lo no cargo e liderar o processo de transição em direção ao novo modelo de país a ser esboçado pela Assembleia Constituinte.
O futuro do Chile permanece em aberto.
Marcos Magalhães escreve no Capital Político