Calotes seculares (por Cristovam Buarque)
Não há como pagar dívida com descendentes dos escravos arrancados da África, explorados e maltratados ao longo de toda a vida
atualizado
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É lamentável que sucessivos governos tenham acumulado dívidas financeiras que só serão pagas com atraso de anos e de década, graças aos precatórios; ainda mais lastimável que as dívidas sociais contraídas por todos os governos brasileiros não serão pagas, porque não podem ser transformadas em precatórios. Por causa da irresponsabilidade, ineficiência e descaso de governos, os brasileiros de hoje, pobres ou ricos, vão ter de pagar R$80 bilhões a brasileiros que foram ludibriados pelos governos anteriores. Para pagar pela irresponsabilidade passada dos governos, vão ter de desviar este montante de outras finalidades, que o país precisa para seu desenvolvimento futuro, e que as famílias precisam para a sobrevivência presente. É uma dívida de todos os brasileiros com estes brasileiros credores.
Com exceção dos advogados que, pelo trabalho competente e a paciência, conseguiram o julgamento destas dívidas, não é fácil saber quem são e quanto receberão estes credores depois de anos ou décadas de luta jurídica para receber o que lhes era devido, por culpa das irresponsabilidades de governos passados. Mas, sabe-se perfeitamente quem são os outros brasileiros vítimas de sucessivos governos e que ficarão sem receber as dívidas que o Brasil tem com eles. Não receberão, porque o precatório é uma dívida financeira, julgada com base em leis, enquanto que a dívida social não é julgada,
porque não há leis que protejam os credores sociais. O próprio conceito de credores sociais não é reconhecido pelos juristas, economistas, políticos: é uma expressão retórica, moral, não jurídica.
Não há como pagar dívida com descendentes dos escravos arrancados da África, explorados e maltratados ao longo de toda a vida; nem com os 800 mil que foram libertos em 1888 sem qualquer indenização pelos anos de cativeiro e exploração que sofreram. Ficaram sem direito nem ao menos a um pedaço de terra e uma banca escolar. Seus descendentes não têm precatórios, nem um pedido de desculpas; nem mesmo um monumento que permita lembrar o sofrimento deles.
Os 12 milhões de adultos analfabetos – porque sucessivos governos foram descuidados, abandonando-os do direito que tinham a uma escola no momento certo – não receberão indenização pela tortura que sofrem todos os dias por serem incapazes de ler. O direito que têm é moral, não legal; por isto não recebem precatórios, nem mesmo sob a forma de escola com qualidade. Os democratas que lutaram contra a ditadura receberam merecidas indenizações pelo exílio, perda de emprego, tortura, prisão, porque as dívidas contra eles foram legalizadas, julgadas e se transformaram em precatórios. Mas as crianças sem escola, ou em falsas escolas, com seus futuros condenados ao desemprego e à pobreza não serão indenizados.
Como também não serão os 100 milhões sem esgoto, os 35 milhões sem água encanada. Os desempregados por causa de erros e “pedaladas” por governos anteriores ficarão sem precatórios apesar da dívida que o Brasil tem para com eles; os famintos e os moradores nas ruas tampouco serão indenizados. Os familiares dos doentes e mortos devido à estúpida inconsequência de um governo que se negou a aplicar vacinas no momento certo, também não serão indenizados, enquanto não houver uma lei que os beneficie, advogados que os assessore e juizes que reconheça seus direitos. Quando isto ocorrer, muitos não serão beneficiados por falta de endereço. Os precatórios não chegam para quem mora nômade, na rua. Não haverá precatórios para os que não podem contratar advogados que transformem dívida em precatórios.
Felizmente programas como Bolsa Escola, Bolsa Família e agora Auxílio Brasil, tentam pagar parte da dívida com os pobres dos pobres, pagando-lhes R$400 por família por mês, R$ 13 por dia por família, menos de R$ 3 per capita, em famílias com cinco pessoas. Mas, para dar este subsídio sem tirar dinheiro dos privilégios, das mordomias, das rachadinhas, da corrupção, da ostentação, dos subsídios fiscais aos ricos, do fundo partidário, das emendas parlamentares, o governo e o Congresso decidem financiar este auxílio gastando mais do que o Tesouro Nacional arrecada, com isto forçando o povo a pagar o que recebe com a redução do salário real depredado pela inflação. Para pagar os precatórios e os auxílios tiram dinheiro dos próprios beneficiados, ao pagar-lhes com moeda desvalorizada pela inflação, uma espécie de cheque com meio fundo.
O trabalhador receberá seu salário valendo menos do que o valor escrito na cédula ou no contracheque, e esta dívida que se acumulará ao longo de anos não provocará precatórios, porque será um calote fiscal sistemático, diário, constante e aceito, tanto quanto o calote social ao longo dos séculos.
Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador