Brincar pouco é morrer (Por Miguel Esteves Cardoso)
Brincar é esquecer. Brincar não é só um carregamento da pilha. É a própria pilha
atualizado
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Se o nosso maior tesouro é o tempo, porque é que não passamos longas horas a tomar banho dentro dele, como fazia o Tio Patinhas no cofre olímpico onde guardava o dinheirinho?
Se o nosso maior tesouro é o tempo, porque é que não estamos sempre a fazer contas à vida, tentando dividir as 24 horas do dia de maneiras cada vez mais engenhosas? Porque é que não estamos sempre a afinar as 24 horas do dia anterior?
Deveria ser o debate principal das nossas vidas: o que fazer às horas que temos, de forma a não desperdiçarmos o pouco que temos. Imaginemos a distribuição mais boçal: oito horas para dormir, oito horas para trabalhar e oito horas para fazer outras coisas. Sejamos severos e puxemos quatro destas últimas horas para trabalhos não pagos: chatices, transportes, obrigações e tarefas de sobrevivência.
As quatro horas que sobram são para brincar, para distrair, para criar, para não fazer nada, para ler, para tratar de nós, para aperfeiçoar a nossa existência. Não é preciso fazer-se um inquérito para desconfiar de que quase ninguém de entre nós está a passar estas quatro horas a brincar.
Quatro horas é um sexto de um dia. Já é perigoso passar cinco sextos do dia a fazer o que é preciso para viver (dormir, ganhar dinheiro, tratar da casa e da família) e só um sexto a espairecer dessa canseira.
Mas é uma loucura esbanjar parte desse sexto a reforçar os gulosos cinco sextos que nos comem o resto do dia.
É contraproducente. Olhe-se para os animais, que não sofrem de preconceitos calvinistas. Quando trabalham de mais, não rendem.
Nem o melhor ciclista do mundo consegue estar tanto tempo em cima da bicicleta, a pedalar. Brincar não é um descanso. É uma necessidade. É um alimento.
Não, é mais do que um alimento: é água. É a água da nossa existência. É a água que tratamos como um luxo: “Estás a beber água a uma hora destas? És algum paxá ou quê? Volta mas é para a bicicleta, mandrião!”
Brincar é esquecer. Brincar não é só um carregamento da pilha. É a própria pilha.
(Transcrito do PÚBLICO)