Brasil omite violações dos direitos dos negros em relatório à ONU
Sem o mínimo para se discutir a proteção e a promoção dos direitos humanos (por (Camila Asano e Gabriel Sampaio)
atualizado
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O governo de Jair Bolsonaro enviou para as Nações Unidas, esta semana, a sua versão sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. O documento faz parte de um procedimento que avalia regularmente a situação dos direitos humanos em cada um dos países-membros da ONU.
O relatório enviado pelo Estado brasileiro apresenta, no entanto, uma série de supressões e distorções da realidade em que o país se encontra – como por exemplo, no campo da segurança pública e do combate à tortura.
A Revisão Periódica Universal (RPU) da ONU, como é chamada, pretende avaliar o que o Governo tem feito para assegurar a protecção e a promoção dos direitos humanos da sua população, bem como combater violações sistemáticas, seguindo recomendações feitas pelos demais membros das Nações Unidas.
Embora tenha recebido mais de 50 recomendações relacionadas com o tema da segurança pública no último período, o Governo federal optou por não dar prioridade a esse tema no seu relatório. Isso reflete a falta de compromisso no combate à letalidade policial e ao encarceramento em massa que atingem maioritariamente a população negra, pobre e periférica do país.
O Governo parece ignorar um dos marcadores mais graves da violação de direitos humanos no país: o racismo sistêmico e estrutural. Segundo dados do 15.º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, quase 80% das pessoas mortas pela polícia em 2020 eram negras, ao passo que 66,3% da população privada de liberdade, no mesmo ano, também era composta por negros.
Em relação à prática do desaparecimento forçado, há menção a supostos esforços empenhados pelo Estado brasileiro. No entanto, ainda não há no direito interno a tipificação da conduta como crime, a fim de que seja apurada como tal e encontre respaldo legal — inclusive para a responsabilização do Estado por crimes praticados pelos seus agentes ou para omissões quanto à investigação e tutela das vítimas.
Do mesmo modo é tratado o tema do sistema de Justiça. São indicadas tão-somente as iniciativas do Poder Judiciário em relação aos casos de tortura no país. Não constam quaisquer iniciativas do Executivo ou do Legislativo objetivando, por exemplo, a redução da taxa de encarceramento, como recomendado no último período da RPU.
Aliás, no combate à tortura no Brasil, é possível afirmar que houve um grande retrocesso, visto que o Governo federal deixou de propor iniciativas que fortalecessem o Sistema Nacional de Combate e Prevenção à Tortura desde o primeiro ano do mandato de Bolsonaro, em 2019.
É evidente que a versão do Governo brasileiro se limita a elencar a ratificação de tratados e convenções internacionais, mesmo que não as tenha cumprido internamente. A escassez de espaços de participação e diálogo com a sociedade civil, a constante falta de transparência no fornecimento de dados e informações precisas e a disseminação de desinformação são características da atual gestão federal.
Sem o mínimo para se discutir a proteção e a promoção dos direitos humanos, é impossível garantir políticas públicas que, de fato, atendam a toda população brasileira — especialmente àquelas parcelas mais vulnerabilizadas pelo racismo estrutural.
É neste sentido que se torna necessário que organizações da sociedade civil e demais coletivos e movimentos sociais tenham participação ativa em espaços como o da RPU, para denunciar as ações e omissões do Estado – a fim de que haja constrangimento internacional que o faça assumir um compromisso efetivo na proteção dos direitos humanos.
Camila Asano é Diretora de programas da Conectas Direitos Humanos. Gabriel Sampaio é Coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos. Artigo transcrito de O Público