Bolsonaro continua sendo um risco (por Mary Zaidan)
A pouca tinta que sobra na caneta do presidente derrotado ainda pode causar estragos
atualizado
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O café meio morno servido nos palácios do Planalto e no Alvorada esfriou de vez. Primeiro presidente da República da história do país a não se reeleger, Jair Bolsonaro já vinha experimentando o dissabor do isolamento político há algum tempo, embora entre um turno e outro da eleição tenha conseguido adoçar uns e outros com armações que pareciam capazes de inverter o jogo. Deu tudo errado. Mas nos longos 60 dias que separam a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva da posse, a pouca tinta que sobra na caneta de Bolsonaro pode causar estragos.
Por tudo que foi mostrado nos últimos quatro anos, sabe-se que Bolsonaro tem personalidade vingativa. Sem ter conseguido renovar o mandato, mas ainda na Presidência, não é improvável que por meio de decretos – mesmo inconstitucionais -, ele tente estabelecer normas destrutivas ou que, no mínimo, venham a criar embaraços para o futuro.
Esse rol abarca mais liberalidades para armas e munições, e, arrepiem-se, suspensões de multas e novos licenciamentos ambientais, para construções, pastos e garimpos. Poderá ainda usar a sua Bic para conceder novos indultos e benefícios a amigos do governo, em especial aos que colocaram dim-dim na campanha.
Até o último domingo, Bolsonaro desconhecia a derrota. Ganhou todas desde 1989, quando se elegeu vereador pelo Rio de Janeiro, e as sete eleições consecutivas disputadas para deputado federal a partir de 1990. Nesse período, introduziu os filhos e ex-mulher no ganho fácil da política, com salários fartos – e extras via rachadinha. Limitava-se a navegar no baixo clero da Câmara dos Deputados, entre piadas de mau gosto e declarações asquerosas que lhe garantiam minutos de fama e a eleição seguinte.
O salto para a Presidência da República foi em tudo e por tudo sensacional. Embalado pelo antipetismo e por um atentado a faca, que por dias a fio o exibiu na mídia como vítima, venceu. De lá pra cá, conseguiu tirar do armário uma extrema direita até então tímida, que pôs suas garras para fora. E espremeu o centro e até uma parcela da esquerda com as delícias do Centrão, leia-se orçamento secreto.
Bolsonaro nem mesmo tinha arrumado a faixa no peito quando deu início à campanha pela reeleição, instituto que ele dizia repudiar. “A nossa bandeira jamais será vermelha”, berrou da tribuna externa do Palácio do Planalto, no dia da posse. Iniciava ali a trilha autocrata que ele viu se esvair domingo.
Embora tenha ensaiado passos semelhantes ao do ex-presidente Donald Trump, a quem idolatra, com pregação sistemática contra a confiabilidade das urnas e do sistema eleitoral, Bolsonaro, ao que parece, não pretende contestar os resultados. Não o fez na noite da eleição, quando preferiu não falar e não receber ninguém, nem mesmo aliados mais próximos. Mas ainda pode usar a narrativa de fraude se decidir disputar votos novamente, beneficiando-se da fidelidade canina de alguns e da fraca memória de outros. Afinal, foi só em 2020 que ele pôs para correr nas redes a mentira de que tinha provas que havia vencido no primeiro turno dois anos antes. E muitos acreditaram na farsa.
Bolsonaro foi derrotado, mas não deixou de ser um risco à democracia e à civilidade. Fincou bandeira em São Paulo, com a larga vitória de Tarcísio de Freitas, candidato que ele inventou, e no Rio de Janeiro, seu domicílio eleitoral.
E até a posse do novo presidente, os olhos do país terão de se voltar para normatizações fora do eixo, abusos. Será preciso atenção redobrada. Afinal, quem foi capaz de orquestrar algo tão vil quanto a tentativa de impedir o acesso ao voto via Polícia Rodoviária Federal escancara (de forma reincidente) que não tem qualquer limite. Todo cuidado é pouco.
Mary Zaidan é jornalista