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Autocracia S.A (por Gustavo Krause)

O fenômeno do autoritarismo

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Reprodução/Orlando Brito
Imagem em preto e branco de policial fardado, de costas, segurando um cassetete. Ao fundo, manifestantes contra a ditadura militar
1 de 1 Imagem em preto e branco de policial fardado, de costas, segurando um cassetete. Ao fundo, manifestantes contra a ditadura militar - Foto: Reprodução/Orlando Brito

Anne Applebaum é uma consagrada jornalista (ex-editora das revistas The economist e The Spectator ) escritora (prêmio Pulitzer, em 2003, com a obra Gulag – Uma história dos campos de prisioneiros soviéticos ) que consolidou seu prestígio internacional como historiadora e uma destacada pensadora sobre o fenômeno do autoritarismo que tem ampliado seus domínios ao longo da história política contemporânea.

Em 1988, como correspondente internacional, na Polônia (onde veio a casar, em 1992, com Radoslaw Sikorski, Ministro das Relações Exteriores da Polônia, ex-membro do Parlamento Europeu) vivenciou, de perto, os estertores da guerra fria, o colapso da União Soviética o que lhe conferiu experiência profissional com visão privilegiada sobre ascensão e declínio das democracias ocidentais bem como a crescente onda do populismo autoritário que vem ampliando espaços na geopolítica global.

Sua aguda percepção, rechaça, de plano, visões simplistas e conclusões apressadas, salientando que não há nações condenadas a viver sob uma ordem autoritária, tampouco existem garantias irremovíveis para a existência dos sistemas democráticos. Vai além ao afirmar que, atualmente não existe um campo democrático e um campo autoritário: “São vários tons de cinza. Há muitos países no meio e, há muitas práticas autocráticas dentro das democracias. Há, também, países que são, nominalmente, parte do mundo democrático, mas se alinham, cada vez mais,  às autocracias tentando importar seus métodos […] cujo exemplo mais famoso é Viktor Orban que é membro da União Europeia e da Otan e, mesmo assim, está abertamente alinhado com a Rússia em sua política externa” (Entrevista na Folha de São Paulo, Edição de 04/11/24).

No livro O Crepúsculo da Democracia, o subtítulo oferece ao leitor mensagem central do autoritarismo: seduz e, ao mesmo tempo, desfaz os laços de amizade em nome da política. O ponto de partida é o relato de uma prosaica festa de confraternização na passagem do século de uma centena de amigos e companheiros que, progressivamente, se deram às costas diante da possibilidade de divergir. Em duas décadas, o contágio do ódio eliminou a possibilidade do pluralismo das ideias, ensejando a relação conflituosa amigo/inimigo. A autora sentiu na própria pele, por conta da origem judia, as chibatadas do antissemitismo.

Em seis capítulos, respaldada em fatos e nas lições da história, Applebaum ao tempo que alerta para a escalada do populismo e autoritarismo no mundo, não subestima a força do movimento e aponta para as fragilidades das democracias, incapazes de superar e vencer o descontentamento, a insatisfação das pessoas com os rumos da vida moderna, as dramáticas mudanças sociais, demográficas e tecnológicas que alimentam o apelo salvador dos líderes autocráticos.

Como resultado da experiência profissional, estudos e reflexões sobre o fenômeno do autoritarismo, a Anne Applebaum identifica um novo modelo de organização das forças que têm por inimigo comum a democracia ocidental: a Autocracia S.A.

Superado como regra, o argumento da força deu lugar às formas mais sutis de destruição das instituições democráticas e ao contrário das alianças militares ou policiais de outras épocas e lugares, assinala a autora: “esse grupo opera não como um bloco, mas como um aglomerado de empresas unidas não pela ideologia, mas pela brutal e obstinada determinação de preservar sua riqueza e seu poder. É isso que chamo de Autocracia S.A.”

Acrescenta: “Em vez de ideias, os tiranos que lideram a Rússia, China, Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Nicarágua, Angola, Mianmar, Cuba, Síria, Zimbábue, Mali, Bielorússia, Sudão, Azerbaijão, e talvez outras três dezenas de países compartilham a determinação de privar seus cidadãos de qualquer influência ou voz pública reais, de resistir a todas as formas de transparência ou prestação de contas e de reprimir qualquer um, no âmbito, doméstico e internacional que os desafie”.

O modus operandi da organização oferece aos seus membros poder, dinheiro e “algo menos tangível: a impunidade”. A rigor, esta rede ampla e diversificada, sob as bênçãos da Rússia putinista celebrou uma terrível aliança com o moderno casamento da cleptocracia com a ditadura que protege as tenebrosas transações no universo paralelo do circuito dos crimes financeiros. Todos os déspotas dos diversos continentes são corruptos, bilionários e solidários na luta contra os valores das sociedades abertas e democráticas.

De fato, a sólida e minuciosa narrativa se estende por cinco densos capítulos e  revela uma realidade assustadora. A ambição dos ditadores é dominar o mundo. Na entrevista dada à Folha um dia antes da eleição de Trump, a autora não fez previsão. Talvez, pressentira a derrota.

E quando indagada quanto às formas de lutar pela democracia, enfatizou o ativismo democrático da cidadania e, no epílogo do livro, “Democratas Associados”, conclui com uma convocação: “Elas (as democracias) podem ser destruídas a partir de fora para dentro, por divisões e demagogos. Ou podem ser salvas. Mas somente se aqueles que vivem nelas estiverem dispostos a fazer o esforço de salvá-las”  .

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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