Ataque a Israel: judeus, árabes e a maldição de Balfour (Ana Sá Lopes)
Esta guerra foi prevista há mais de um século. Os acontecimentos deste sábado vão agravá-la e as consequências são imprevisíveis
atualizado
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Sobre o tenebroso ataque do Hamas a Israel sabemos o quando e onde, mas falta saber o como e o porquê deste sábado. A maior derrota dos serviços de informações de Israel de sempre vai dar agora mais poder ao até agora frágil Benjamin Netanyahu e aos ultra-ortodoxos para despedaçar a Palestina, com o apoio certo dos Estados Unidos, da União Europeia e das democracias ocidentais.
O coordenador da ONU para o processo de paz no Médio Oriente, a organização que tem feito figura de urso durante todos estes anos de conflito israelo-palestiniano, disse que caminhávamos “para um precipício perigoso” e pediu “contenção”. Não haverá contenção nenhuma. Israel será a nova Ucrânia – ainda que neste caso seja o país colonizador a ser atacado e não o que já estava a ser colonizado. Mas, usando a terminologia atribuída a Roosevelt sobre o ditador da Nicarágua Somoza, os israelitas são os nossos “son of a bitch”.
Esta guerra foi prevista há mais de um século e os acontecimentos deste sábado vão agravá-la e as consequências são imprevisíveis. Um ataque desta dimensão contra Israel, em que os atacantes foram apenas palestinianos, nunca tinha acontecido. A menos que não tenham sido só palestinianos a organizar a operação, mas ainda não existem dados para dizer o contrário.
Fui ler novamente a declaração Balfour, assinada em 1917, no meio da I Guerra Mundial. Demoraria mais de 30 anos até o Estado de Israel ser criado mas, na declaração Balfour – o nome do ministro dos Negócios Estrangeiros britânicos no poder na época –, já se intuía o confronto dos nossos dias. Digamos que sim, há uma maldição Balfour.
A declaração é apenas uma carta ao líder da comunidade judaica do Reino Unido a manifestar o apoio do Governo ao estabelecimento de um estado judaico na Palestina, caso a Inglaterra conseguisse, nesse Novembro de 1917, a derrota dos otomanos que dominavam a zona.
Escreveu Arthur Balfour: “O Governo de Sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na Palestina de uma ‘national home’ para o povo judeu e fará todos os esforços para conseguir este objectivo, ficando claramente expresso que nada deve ser feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades pré-existentes, não-judias, na Palestina, ou os direitos e o estatuto político gozado pelos judeus em qualquer outro país”. Em 1917, as comunidades não judias não podiam ser “prejudicadas” pelo direito dos judeus a uma terra; em 2023, contra as resoluções das Nações Unidas, prevalece “o direito de Israel à sua defesa”.
Se no tempo da declaração Balfour os judeus já eram um povo mártir, estávamos ainda longe da chegada de Hitler ao poder e do Holocausto. Mesmo na Inglaterra, que estará na vanguarda da luta contra o nazismo, o anti-semitismo é bastante evidente nos anos 30-40 do século XX.
Os judeus são historicamente um povo mártir com direito a uma terra – e foram mártires novamente este sábado. Mas o que a história recente demonstra é que as lideranças israelitas conseguiram criar outro povo mártir, contemporâneo: os palestinianos. Onde está a solução “dois Estados”? O cumprimento das resoluções das Nações Unidas?
No Ocidente, “cancelam-se” (aproveitando uma nova expressão, a cancel culture) pessoas por defenderem os direitos dos palestinianos, como aconteceu a Jeremy Corbyn, o antigo líder do Partido Trabalhista que foi acusado de ser “anti-semita” e agora proibido de concorrer às próximas eleições.
Tony Judt, o historiador judeu que condenou ferozmente a política israelita contra os palestinianos, definia assim, numa das suas últimas entrevistas, os judeus americanos: “Os judeus americanos – a maioria dos quais não sabe nada da história judaica, das línguas judaicas ou da religião judaica – sentem-se judeus por se identificarem com Auschwitz como fonte do seu estatuto de vítima e com Israel como a sua política de segurança. Estão bastante felizes a ver árabes a serem mortos em seu nome, desde que sejam outros judeus a fazê-lo. Não é medo, é algo entre um nacionalismo de substituição e indiferença moral.”
Mais depressa acaba a guerra da Ucrânia do que a tragédia no Médio Oriente.
(Transcrito do PÚBLICO)