As utopias de Darcy Ribeiro (Por Hubert Alquéres)
Darcy foi quase tudo na vida pública. Reitor da UNB, ministro da Educação, chefe da Casa Civil de João Goulart e senador da República
atualizado
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“Fracassei em tudo na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras e não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são as minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
Darcy Ribeiro foi um dos grandes brasileiros nascido no icônico ano de 1922, em 26 de outubro. Sua frase, em tom de desabafo e de sentimento de perda, não expressa, contudo, seu enorme legado ao país. Nem as grandes vitórias de sua vida. Pensar e entender o Brasil a partir de uma leitura de como se mesclaram raças e culturas foi sua grande utopia. Mas não a única.
Etnólogo, antropólogo, educador, político e escritor de vasta produção intelectual, se dedicou, em particular, à defesa da causa indígena e à educação. Seus ”fazimentos”, para utilizar uma expressão de sua lavra, vão da fundação do Museu do Índio até a criação da Universidade Nacional de Brasília, passando, ainda, pela implementação em larga escala do ensino integral no Rio de Janeiro, no governo de Leonel Brizola.
Darcy foi quase tudo na vida pública. Reitor da UNB, ministro da Educação, chefe da Casa Civil de João Goulart e senador da República. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996, da qual foi o relator no Senado, leva seu nome. Difícil definir qual dos seus “fazimentos” foi o mais relevante, mas, certamente, sua participação, ao lado do Marechal Rondon e dos irmãos Villas Boas, no projeto de criação do Parque Nacional do Xingu foi uma de suas maiores contribuições ao Brasil.
As linhas de sua vida cruzaram com as de outras duas grandes personalidades de nossa história: o marechal Cândido Rondon e o educador Anísio Teixeira, seus grandes mestres. O encontro com o já octogenário marechal se dá em 1947, quando ingressa no Serviço de Proteção ao Índio, por recomendação do antropólogo alemão e professor da Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, Herbert Baldus.
Há um episódio emblemático da relação entre eles. Já bastante enfraquecido em função da idade, Rondon não pode ir ao funeral do seu grande amigo Catende, cacique dos índios Bororos. Para representá-lo, envia seu pupilo, com uma carta na qual o marechal diz: “Darcy é meu olho, minha boca”. E quando Rondon morre quem discursa em seu funeral também é o seu pupilo predileto.
Anísio Teixeira entra em sua vida em 1952. “Foi a mente mais brilhante que conheci”, diria Darcy Ribeiro anos depois, acrescentando: ”Anísio me ensinou a pensar, a duvidar”. A partir daí a Educação passa a ser sua outra grande utopia. Os dois fundam a UNB e vão travar o bom combate em defesa da escola pública, como signatários do manifesto “Educadores – Mais uma vez convocados”, de 1959. Especificamente, Darcy polemiza com o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, sobre o papel da escola pública.
Para implementar no Rio de Janeiro os Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs, Darcy foi beber na experiência exitosa da Escola Parque de Salvador, criada por Anísio Teixeira em 1950. Assim, Anísio definia o papel da escola integral: “desejamos que a escola eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações, prepare realmente a criança para a sua civilização”.
Para entender o Brasil, produz uma extensa e rica obra teórica no campo da antropologia. Inicia pelo estudo do “Processo Civilizatório” e da “América e a Civilização”, títulos de dois de seus livros. De forma inovadora, faz uma tipificação antropológica das nações americanas, classificando-as em três tipos: 1) “Povos novos”, resultado do alto grau de miscigenação entre os europeus, negros africanos e índios. Esses seriam povos diferenciados e únicos, no qual o Brasil se encaixava; 2) ”Povos-testemunhos”, aqueles formados sobre as civilizações já existentes (Peru, México, Bolívia etc); 3) “Povos transplantados”, que se formaram a partir dos europeus. Os Estados Unidos e o Canadá seriam os maiores exemplos.
Seu livro “O Povo Brasileiro – A formação e o sentido do Brasil” é leitura obrigatória para a compreensão da nossa formação étnica e cultural. Nele, nos descreve como um dos países mais miscigenados do mundo, cujas matrizes são o colonizador, o índio e o escravo africano. Segundo sua teoria, essas matrizes se desconstroem ao longo do tempo e dão lugar a um povo único e ímpar. Ele não é negro, branco ou índio. É a mistura dos três, com uma identidade própria.
É autor ainda de dois ensaios sobre a cultura indígena. Em “Maíra”, narra a história de um índio adotado por um padre e convencido a seguino sacerdócio, entrando em conflito por ter abandonado seu povo e seus valores. Em” Uirá sai a procura de Deus”, narra a saga de um índio Urubu-Kaapor, que decide pôr fim à vida ao ter seu cotidiano devastado pela presença do “homem civilizado”.
Suas utopias estão entre nós. Conforma nossos anseios por um Brasil autônomo, por crianças alfabetizadas, por escolas de boa qualidade, por justiça social e democracia. Afinal, a teimosia nos fez brasileiros, como bem diz a frase de Darcy: “O Brasil surge e se edifica a si mesmo, não em desígnios de nossos colonizadores. Eles só nos queriam como feitoria lucrativa. Contrariando suas expectativas, nos erguemos, imprudentes, inesperadamente, como um novo povo, distinto de quantos haja, deles inclusive, na busca do nosso ser e do nosso destino.”
Hubert Alquéres é Secretário Estadual da Educação de São Paulo, diretor licenciado do Colégio Bandeirantes e membro da Academia Paulista de Educação.