As Arcadas não combinam com intolerância (por Hubert Alquéres)
A intolerância praticada pela esquerda tem diferença da extrema-direita?
atualizado
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Em seus quase 200 anos, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco tem larga tradição de defesa da democracia. Desde tempos imemoriais em suas arcadas respira-se liberdade. O respeito ao contraditório, a observância do pluralismo e a liberdade de cátedra são valores impregnados em suas paredes e bancadas. Seu Centro Acadêmico, o Onze de Agosto, sempre esteve na trincheira de frente das boas causas abraçadas por professores e alunos. Sua resistência à ditadura de Getúlio Vargas deu ao Largo São Francisco o título de “território livre”. E foi desse território que o jurista Godofredo leu a “Carta aos Brasileiros”, de 1977, na qual clamava pela volta do Estado de Direito e denunciava a ditadura militar.
Se há um lugar no qual deveria ser estritamente observada a famosa frase atribuída a Voltaire “não concordo com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até o último instante o teu direito de dizê-la”, esse lugar deveria ser a faculdade de direito mais antiga do país. Não é o que pensa a atual diretoria do Onze de Agosto, empenhada em cancelar Janaína Pascoal, impedindo sua volta ao quadro docente da Faculdade de Direito da USP, quando se encerrar, em março, seu mandato de deputada estadual em São Paulo. Detalhe: ela ocupa uma cátedra por concurso, tendo direito líquido e certo de retornar ao quadro docente da instituição.
O Centro Acadêmico tomou a iniciativa de articular um abaixo-assinado contra o retorno de Janaína por suas posições políticas. Entre elas a de ter sido autora do pedido de impeachment de Dilma, juntamente com o respeitado jurista Miguel Reale Junior, ser “uma bolsonarista esclarecida” e de não ter assinado a segunda “Carta aos Brasileiros”, divulgada em onze de agosto de 2022, em defesa da democracia.
Três dos Torquemadas do Largo São Francisco são autores de um artigo no qual se propõem a definir quem “cabe e quem não cabe em nossa instituição” e se dedicam a “demolir o mito da tradição plural das Arcadas”, com o argumento que sua história “não é marcada pela pluralidade, mas sim pela exclusão”. E se vangloriam: “preciso ser intolerante com os intolerantes”, numa adaptação do olho por olho, dente por dente.
Sem dúvida, estão escrevendo uma página infeliz da história das Arcadas, que não expressa o sentimento da instituição ou de sua comunidade. É reconfortante ouvir a voz de um jurista do porte de Floriano de Azevedo Marques Neto, ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, afirmar:
“Querer proibir que um professor reassuma sua docência, especialmente pelo fato deste docente professar ideias com as quais discordamos, para além de ferir as liberdades constitucionais, é um desrespeito à história de pluralidade que marca o Largo de São Francisco. Janaína pode representar tudo com que discordo, mas é professora e, portanto, deve ser tratada com respeito e com a tradição plural das Arcadas”.
Essa também foi a posição do atual diretor da São Francisco, o jurista Celso Campilongo, um dos articuladores da “Carta aos Brasileiros” do ano passado, e da vice-diretora, Ana Elísia Brechara: “A livre manifestação do pensamento e a liberdade de consciência garantidos pela Constituição de 1988, que se aplicam também às diretrizes das atividades intelectuais e científicas. É na trilha dos mandamentos constitucionais que garantem a liberdade de cátedra e a livre manifestação do pensamento de todos os seus docentes que a Faculdade reafirma seu compromisso continuado e inabalável com a construção da democracia e o crescente respeito às diferenças”.
Mesmo entre os alunos, a iniciativa do Onze de Agosto provocou desconforto, revelando inexistir consenso quanto ao seu teor. Louve-se a nota da Representação Discente – coletivo formado por 59 alunos eleitos anualmente e que representam o corpo discente em questões deliberativas da Faculdade de Direito/USP. Manifestaram o mesmo ponto de vista do professor Floriano de Azevedo Marques Neto, criticando o centro acadêmico por ter tomado uma posição em nome dos “dois mil franciscanos” sem consultá-los.
O fato de possivelmente expressar uma posição minoritária até mesmo entre os estudantes, não deve levar a subestimá-la. É um indicativo de que nesses tempos de polarização, a intolerância, a tentativa de supressão do debate democrático não é monopólio da extrema-direita. Com sinal trocado, setores da esquerda também o praticam. O mais grave, em um ambiente no qual não deveriam existir: o universo acadêmico.
A tentativa de cancelamento de Janaína não é um caso isolado.
O ex-senador Cristóvam Buarque também já foi vítima da mesma intolerância, quando participava, em 2017, do encontro anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. À época teve de suspender o lançamento, na UFMG, do seu livro Mediterrâneos Invisíveis porque foi hostilizado por um grupo de alunos e professores por ele ter votado favorável ao impeachment de Dilma.
Já na Universidade Federal da Bahia um grupo de alunos impediu a exibição de um documentário sobre Olavo Carvalho e, na Unicamp, o vereador Fernando Holiday, do MBL, foi impedido de participar de uma palestra sobre cotas na universidade.
Outro exemplo foram as agressões à jornalista cubana Yoani Sánchez, que ficou conhecida depois de criar um blog com críticas ao governo do seu país, quando visitou o Brasil. Em Pernambuco e na Bahia foi hostilizada por militantes de esquerda defensores da ditadura de Cuba. Em São Paulo, foi impedida de proferir uma palestra na Livraria Cultura. Vale acompanhar todo este episódio no potente filme de Rafael Bottino, A Viagem de Yoani.
Fica a pergunta: qual a diferença da intolerância praticada pela esquerda da intolerância da extrema-direita?
Voltando ao episódio mais recente. Não se trata de concordar, ou não, com o ideário político de Janaína Pascoal, mas de respeitar valores pelos quais os brasileiros lutaram tanto e de ser fiel à própria história da faculdade, sem reinterpretá-la para justificar a censura, o cancelamento, a intolerância; que não combinam com o Território Livre das Arcadas.
Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação e diretor do Colégio Bandeirantes. Foi Secretário de Educação no Estado de São Paulo, professor no Instituto Mauá de Tecnologia e na Escola Politécnica da USP.