metropoles.com

As águas já dançam nos rios (por Roberto Caminha Filho)

E é assim que a vida se refaz ao longo dos grandes rios, a riqueza amazônica desfila para o mundo e tudo se harmoniza.

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
TripAdvisor/Reprodução
Rio Mamori, Amazonas
1 de 1 Rio Mamori, Amazonas - Foto: TripAdvisor/Reprodução

Quando as primeiras nuvens pesadas começam a se reunir lá no horizonte, a vida muda nas comunidades que vivem ao longo do Rio Amazonas, do Rio Solimões, do Rio Negro e seus afluentes. É como se a natureza desse um sinal de que a festa vai começar. Lá vem ela: a temporada das chuvas! É água chegando, água subindo, e a criançada quase não se aguenta de tanta alegria. É a volta para a escola, pelos rios, e reencontro com os amiguinhos e com a merenda escolar.

Imagine só: durante a seca, os ribeirinhos, como são chamados os moradores que vivem às margens dos rios, ficam numa verdadeira missão para buscar água longe e cultivam suas roças em terras que já estão secas, esperando ansiosamente pela época em que as chuvas vão trazer vida nova para a região. Pois bem, esse momento finalmente chega, e é hora de todo mundo se preparar para o que vem pela frente.

Logo nas primeiras chuvas, o rio começa a se espreguiçar e a ocupar mais espaço, enchendo a várzea – aquelas terras que estavam secas ao redor. A cada gota, o nível da água vai subindo, e os peixes começam a aparecer em maior quantidade. As cobras começam a chegar e a serem afastadas. É como se o rio ganhasse vida nova, e, com ele, todos os moradores. Tem gente que jura que dá até para ouvir o rio rindo, se preparando para encher o mundo de surpresas.

Jacarés e crianças, já se desafiam, um de olho no outro, com vigias na mutuca. A meninada olha para o céu e fica contando os pingos, cada gota um motivo para festa. Eles se divertem tentando prever quando o rio vai chegar na marca mais alta, ali perto da sua casa, a do pescador mais mentiroso do lugar.

Os adultos começam a desembaraçar seus arrastões e tarrafas, separar os saquinhos de açúcar e sal prevendo as suas primeiras pescarias de “caqueado” que é a melhor diversão do pescador que conhece o seu pedaço. O pescador com mais conhecimento das tocas dos melhores peixes, lança a sua imensa tarrafa ou o seu arrastão sobre o capim que o peixe se esconde para comer,  começando, então, a batição, nas águas e capins das cercanias. O peixe foge e se embaraça nas malhas. Os homens, tomam a sua cachaça e entram na água para, com as mãos nuas, irem sentindo qual peixe está preso. Eles sentem o tucunaré, a pescada, a pirapitinga, os tambaquis, as piranhas, as traíras, os carás, os bodós, os cuiús-cuiús e até os bodecos, como são chamados os pirarucus de pequeno porte. A cachaçada é grande, a comida é farta e, de vez em quando, lamentam uma falange que a piranha teve direito. Os peixes são tirados das malhadeiras, centímetro a centímetro e os tachos e fogueiras já ficam esperando para o banquete.

E com a subida das águas, os bichos também entram na dança! Os botos (aqueles golfinhos cor-de-rosa) começam a nadar mais perto das casas, e as garças ficam por ali, espiando, como se estivessem fofocando entre elas sobre quem está mais animado com a chegada das chuvas. As crianças adoram correr atrás dos bichos e ver os botos saltarem na água, enquanto os adultos observam de longe, só rindo das traquinagens dos pequenos.

Enquanto isso, nas casas flutuantes, que foram feitas para suportar a subida das águas, as famílias organizam tudo para o novo cenário. A água vai chegando e, com ela, a pescaria fica mais farta. A galera se prepara para capturar peixes maiores, como o pirarucu, e dar um bom banquete à comunidade. Tudo isso faz parte da rotina ribeirinha e da alegria que eles têm de viver em harmonia com as águas.

Quando a chuva cessa um pouco e o rio chega ao ponto mais alto, todo mundo tira um tempinho para admirar o espetáculo. Ali, na beira do rio, crianças, jovens e adultos sentam para ver o pôr do sol refletido na água, enquanto sentem o cheiro de terra molhada e escutam o barulho da floresta. E, por fim, a noite chega, e o som dos sapos e dos grilos começa a embalar o sono de quem trabalhou o dia todo.

Assim, entre risadas, cantorias e o trabalho do dia a dia, os ribeirinhos celebram mais uma vez o ciclo das águas. Eles sabem que viver ali é estar sempre em movimento, mas com um coração cheio de gratidão. Cada chuva que cai é uma promessa de fartura e uma lembrança de que a vida nos rios da  Amazônia é uma dança constante entre a terra, a água e as pessoas – uma dança que ninguém troca por nada nesse mundo.

E é assim que a vida se refaz ao longo dos grandes rios, a riqueza amazônica desfila para o mundo e tudo se harmoniza.

 

Roberto Caminha Filho, economista e péssimo pescador, vê e admira o herói amazônico que habita os grandes rios.

Compartilhar notícia

Quais assuntos você deseja receber?

sino

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

sino

Mais opções no Google Chrome

2.

sino

Configurações

3.

Configurações do site

4.

sino

Notificações

5.

sino

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comBlog do Noblat

Você quer ficar por dentro da coluna Blog do Noblat e receber notificações em tempo real?