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Antônio Gonçalves Dias (por José Sarney)

O bicentenário de nascimento do nosso maranhense mais ilustre

atualizado

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Gonçalves Dias
1 de 1 Gonçalves Dias - Foto: Reprodução

Esta semana, dia 10, afinal — já faço o anúncio há tempos — acontece o bicentenário de nascimento do nosso maranhense mais ilustre, o moço que reuniu os sangues negro, indígena e branco e criou a poesia brasileira.  

Alguém dirá um e outro nome de poeta — e Gregório de Matos? e Tomás António Gonzaga? e Cláudio Manuel da Costa? e José Bonifácio? e Gonçalves de Magalhães? e …? Poetas, sem dúvida, foram, e mesmo grande poeta, como no caso do Boca do Inferno, mas, brasileiros ou portugueses, não fizeram parte dessa categoria que surgiu com o moço Antônio. Depois vieram outros grandes poetas, mas estes fizeram sempre ato de contrição diante do primeiro deles no tempo e no espaço, a começar pelo poeta Machado de Assis — “seus versos serão repetidos enquanto a língua que falamos for a língua de nossos destinos” — e por seu biógrafo Manuel Bandeira. 

Extraordinário poeta, Gonçalves Dias foi também um paradigma de homem íntegro. Já falei de vários aspectos de sua personalidade, do amante que abdicou da felicidade pela amizade e pela honra, do precursor que deu ao Brasil o que Bandeira chamou de “primeiro grito abolicionista na poesia brasileira” um quarto de século antes de Castro Alves e, brevemente, do estudioso. Devo dizer que foi também dramaturgo, professor, jornalista e deixou fragmentos de um romance, que como estudioso não só foi um dos fundadores da etnografia no Brasil — sua coleção etnográfica foi a base da do Museu Nacional, Raimundo Lopes e Roquette Pinto o tiveram como modelo — como um historiador que deixou pesquisas documentais importantíssimas. Participou vagamente da política maranhense — era bem-te-vi, cabano —, mas considerava que “[a política] no Brasil, onde quer que seja, qualquer que seja a cor política, não passa ela nunca do individualismo, não é mais do que isso”. 

Falei brevemente de sua poesia de temática indígena e citei o Y-Juca-Pyrama como imortal. Sem dúvida ele está acima das contingências literárias e representa de tal forma sentimentos que fazem parte do que a alma brasileira considera ter de melhor que seu destino a ela está inexoravelmente ligado. Sua imortalidade é a de dizer o que somos de melhor. Só pode desaparecer se uma catástrofe indizível nos varrer da face da Terra sem deixarmos rastro.  

No primeiro artigo dessa série o chamei de poeta de Os Timbiras. É que esse grande poema, uma saga à maneira da Ilíada, assinala mais que qualquer outro a importância da voz dos povos originários em sua poesia. O inesquecível primeiro verso — “Os ritos semibárbaros dos Piagas” — se clareia ao fim da introdução: “Nem só me escutareis fereza e mortes: / As lágrimas do orvalho por ventura / Da minha lira distendendo as cordas, / Hão de em parte ameigar e embrandecê-las.” O poema é, portanto, uma narrativa, ou uma sucessão de narrativas. Canta o combate dos chefes Timbira e Gamela: “Voa Itajuba sobre o rei das selvas, / Cinge-o nos braços, contra si o aperta / Com força incrível: o colosso verga, / Inclina-se, desaba, cai de chofre…” Canta a reunião dos timbira, o canto do piaga, a discórdia entre os guerreiros, o sofrimento de Ogib e a falta de Jatir, a decisão de Itajuba até, ao fim, o ataque dos Gamela ao mensageiro: “‘Vida por gota pagareis meu sangue; / Por onde quer que fordes de fugida / Vai o fero Itajuba perseguir-vos / Por água ou terra, ou campos, ou florestas; / Tremei!…’ / E como o raio que em noite escura / Cega, desapareceu! De timorato / Procura Gurupema o autor do crime, / E autor lhe não descobre; inquire… embalde! / Ninguém foi, ninguém sabe, e todos viram. 

Como o guerreiro Tupi do Y-Juca-Pyrama, como na lição ao filho dada na Canção do Tamoio — “Não chores, meu filho; / Não chores que a vida / É luta renhida: / Viver é lutar. / A vida é combate que aos fracos abate, / Que os fortes, os bravos, / Só pode exaltar.” —, a vida inteira o moço Antônio Gonçalves Dias enfrentou a adversidade de peito aberto.  

Em profundo sofrimento físico, resolve ir morrer em casa. Parte da França no brigue Ville de Boulogne. Depois de 53 dias, a 2 de novembro de 1864, se avista o Maranhão. Ele pede que o subam à popa. Vê a terra amada. Desmaia. À noite, nos baixios de Atins, o naufrágio: 

a desgraça / Do naufrágio da vida há de arrojar-me / À praia tão querida… 

 

José Sarney, ex-presidente 

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