Antes um princípio, que um homem (por Otávio Santana do Rego Barros)
Mundo mudou, o Brasil mudou, o Exército mudou. Mas, os princípios que regem a formação dos homens e mulheres das armas permanecem intocáveis
atualizado
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Os últimos vinte dias, por uma graça divina que nos foi concedida à família, nasceu mais um neto. Instalei-me na Urca, bairro na zona sul do Rio de Janeiro, e pude acompanhar de perto a rotina dos alunos da escola de comando e estado-maior do exército (ECEME).
Todos os dias os observava na saída e na chegada do seu dia de trabalho, ao cruzarmos na praça (cuja estátua em seu centro é apodada de “gaivota mãe” pelos alunos) e nas calçadas que levam à escola.
A prova de estratégia, primeira de muitas, era a preocupação do momento. Logo em seguida, começava a guerra. É quando são ministradas matérias para nivelar todos os oficiais nos assuntos de alto nível, inerentes àqueles que, após um rigoroso concurso, serão as cabeças pensantes do Exército de 2030.
Entrementes, os oficiais devem se dedicar à leitura de obras selecionadas pelo comando da escola, para aprofundamento da cultura e descortínio de novas ideias em horizontes de dificuldades para o país e para o mundo.
A lista de obras é icônica, com belos e densos trabalho, muitos dos quais já tive a sorte de lê-los: O SOLDADO E O ESTADO, HOMO SAPIENS, O CHOQUE DAS CIVILIZAÇÕES, NEGOCIANDO COM HITLER, A CAMINHO DA GUERRA, A UTILIDADE DA FORÇA, O FUTURO DO PODER etc.
Respira-se, ali, um clima de serenidade, de academia, de aprendizado, de apego à missão.
Voltei no tempo. Cursei aquela escola há um quarto de século. O mundo mudou, o Brasil mudou, o Exército mudou. Mas, os princípios que regem a formação dos homens e mulheres das armas permanecem intocáveis. E é sobre isso que vou comentar.
Por coincidência, eu retomara a leitura do famoso livro de Alfred de Vigny, Servidão e Grandeza Militares (BIBLIEX, 1975), um clássico sobre as características do sacerdócio da guerra, escrito no século XIX, sob as influências da revolução francesa e da era Bonaparte.
Iluminei diversas passagens, rabisquei a lápis ao lado de ideias que gostaria de recordar, li e reli várias páginas.
O livro se baseia na história de três oficiais, em situações distintas, todos com princípios éticos e morais que ainda nos tocam.
O comandante de um navio, obrigado a executar um degredado em alto mar, que se transforma, posteriormente, em oficial de infantaria e acolhe respeitosamente a jovem esposa do homem a quem matou por ordem do Diretório.
Um velho sargento de artilharia, responsável pelos paióis da fortaleza na qual vivia com filha e futuro genro, que de tão preocupado com as suas granadas e pólvora vai-se junto com sua reserva, ao acender uma tocha à noite para mais uma recontagem da carga.
Um capitão, escolhido por Napoleão como um de seus pajens, que se decepciona com o seu mito, por atitudes que afrontavam seus ideais, e se submete, pela palavra, a manter-se prisioneiro dos inimigos, sem nenhuma amarra e por longos anos, em um navio inglês.
Do Comandante, de Vigny destaca a abnegação, do sargento o senso de cumprimento de missão, do capitão a palavra como lei ética e moral.
A Palavra que, na conclusão, em crítica aos não uniformados, o nobre afirma não passar de uma palavra para o homem da alta política. Mas que se torna um fato terrível para o guerreiro. O que o político diz levianamente ou com perfídia, o servo militar escreve na poeira com o seu sangue.
Conta-nos uma passagem da história dos Estados Unidos, quando o exército anglo-americano vitorioso, já tendo deposto as armas e libertado a pátria, quis revoltar-se contra o Congresso, que, não podendo pagar-lhe o soldo, decidira licenciá-lo.
A George Washington, o generalíssimo e vencedor, bastava uma palavra ou um sinal de cabeça para ser ditador. Fez o que ele sozinho, e apenas ele, tinha o poder de cumprir: licenciou o exército e pediu demissão.
Revela-nos, também, a sua decepção com Bonaparte, na passagem do diálogo entre o imperador e o Papa Pio VII, quando o corso desejava submeter o Santo Padre a seus desígnios mesquinhos.
“Senti uma tristeza toda nova ao descobrir como a mais alta grandeza política podia tornar-se pequena em suas frias manhãs de vaidade, suas armadilhas miseráveis e suas perfídias de devasso”.
É um livro para tê-lo na cabeceira. Aos civis para compreender o sentido filosófico do ser e estar servo das grandezas militares. Aos militares, para exercê-las.
A nobreza da vida castrenses, forjada em escolas como a ECEME, ESAO e AMAN e no dia a dia das guarnições, saberá dar rumo à guarda que morre, mas não se rende, em benefício da população de quem é serva.
Nobreza que fará firmar-se no corpo monolítico da Instituição a razão de ser soldado: “Dedique-se a um princípio, antes que a um homem”.
Nobreza que saberá distinguir um parvenu , da verdadeira liderança, sem achincalhá-la, mas escoimando e alijando suas incapacidades.
Nobreza que acolherá humildemente uma certa insatisfação, não sem causa, da sociedade, inserida nesse ambiente da política nacional divisivo, e que impacta a avaliação do estamento militar.
Paz e bem!
Otávio Santana do Rego Barros. General de Divisão da Reserva