Ainda estamos aqui (Por Cristovam Buarque)
Falta o atestado de óbito da ditadura
atualizado
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“Ainda estou aqui” é uma obra prima que ao mesmo tempo deslumbra e desperta. A análise puramente estética demonstra sua qualidade pela beleza. Reconstitui com perfeição o ambiente de uma família e do Brasil na passagem dos anos 60 para 70, na orla do Rio de Janeiro, tanto em um período feliz quanto nos muitos anos tristes. O desempenho de cada ator, criança ou adulto, dá vida tão perfeita que não sentimos estarem representando. Dificilmente algum ator vai um dia superar Fernanda Montenegro nos minutos finais em que nos fala sem dizer uma única palavra, ou quando Fernanda Torres faz um discurso inteiro apenas com um olhar de relance para o retrato do ditador na parede. Walter Salles criou o ritmo perfeito em sua narrativa, mantendo os espectadores em suspenso durante toda a duração do filme.
Fez uma obra prima que, além do encanto que deslumbra, passa mensagem que desperta, sem panfletarismo, sem apelar ao convencimento, apenas tocando na emoção. Não faz um ensaio sobre a maldade, ele nos mergulha na maldade; mostra o efeito perverso da ditadura sobre uma família normal, como a de qualquer espectador. No centro da trama coloca-se a fortaleza de Dona Eunice, não a militância de Rubens. Este foi o herói mártir, ela foi uma heroína forte. É ela quem conduz o filme; e este é o maior mérito de um diretor, tanto quanto de um escritor que deixa o personagem conduzir a história, como Cervantes ao fazer o Quixote.
Mas o personagem precisa de um moinho de vento para ser enfrentado, e no “Ainda estou aqui” este moinho é o regime que nos arrastou por 21 anos. Uma ditadura cuja maldade fica explicitada no riso de Eunice e seus filhos ao comemorarem a vitória de terem nas mãos, depois de décadas, o atestado de óbito do marido e pai. Esta cena denuncia a ditadura que matava e negava o atestado de óbito, enterro, luto. Maldade que continua, porque ainda não tivemos a alegria de ter nas mãos o atestado de óbito da própria ditadura.
Há 40 anos conquistamos a democracia, mas até hoje as Forças Armadas negam os crimes que foram cometidos; consideram-se um poder à parte, independente dos eleitores. Nenhum oficial de hoje tem culpa ou responsabilidade pelo que aconteceu com Rubens Paiva e com milhares de outros desaparecidos, mortos, torturados, exilados, mas até hoje a instituição se nega a reconhecer os erros do tempo em que uma viúva e órfãos não tinham direito ao atestado de óbito do marido e do pai. A instituição militar se nega a dar o atestado de óbito da ditadura, enterrando-a com o reconhecimento de seus crimes, punindo os responsáveis de antes. Em nome do esquecimento, tenta-se promover a ignorância histórica e deixar o monstro como um vampiro ameaçador.
Este é o papel pedagógico do filme de Walter Salles. O presidente Lula precisa passar este filme no cinema que tem no Palácio da Alvorada e convidar o Ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas, também jovens oficiais para que assistam e debatam o que foi feito meio século antes deles, mas ainda sem o definitivo atestado de óbito. Deixar claro que nenhum deles é responsável por aqueles fatos, mas são coniventes se não se distanciam, não denunciam e não participam da construção de Forças Armadas subordinadas ao poder civil, profissionais e apartidárias.
O presidente deve aproveitar também e convidar o Ministro da Educação e colocar em prática a lei 13.006/2014 sancionada pela presidente Dilma que determina passar filmes brasileiros nas escolas do Brasil. Aproveitar esta lei para encantar nossos jovens com a beleza de uma obra prima do cinema e instruí-los com o conhecimento de um período nefasto na história do Brasil que precisamos saber para não deixar que volte, porque nós ainda estamos aqui.