AfroQueer: Brenda Biya, a filha bissexual do Presidente (Luísa Semedo)
As pessoas LGBT+ sempre existiram em todo o lado. Não as ver significa que elas não estão seguras para viver as suas sexualidades
atualizado
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Brenda Biya, a filha do Presidente dos Camarões, declarou publicamente ser bissexual, ou seja, uma pessoa que sente atração sexual e/ou romântica por mais do que um género. A notícia foi amplamente partilhada, não somente porque o coming out de pessoas LGBTQIA+, com notoriedade pública, ainda é visto como um acontecimento, mas, no caso em questão, igualmente por ter repercussões políticas. Ser LGBT+ nos Camarões pode dar multas de 305 mil euros e seis meses a cinco anos de pena de prisão.
Brenda Biya está por enquanto protegida por viver na Suíça, mas uma queixa já foi feita contra si junto do procurador de Iaundé por “incitação à prática da homossexualidade Apesar de o perigo de uma condenação ser real, Brenda Biya beneficia de um estatuto social privilegiado que lhe confere um certo nível de proteção. A militante pelos direitos LGBT+ nos Camarões Bandy Kiki sublinhou, aliás, esse facto numa publicação de uma rede em que se mostrava satisfeita pela filha do Presidente, mas com esta nota: “No entanto, isto revela uma dura realidade: as leis anti-LGBT nos Camarões afetam desproporcionalmente os mais pobres. A riqueza e as conexões constituem um escudo para alguns, enquanto outros enfrentam consequências severas.
Brenda Biya recebeu aplausos, mas também as usuais torrentes de ódio. Um dos argumentos de ataque, que serve, aliás, para reforçar as legislações antipessoas LGBT+ em países africanos e não só, é a ideia de que ser LGBT+ é uma coisa de brancos ocidentais, uma importação colonialista de uma ideologia nefasta e contrária à cultura e costumes dos países, e que existe, portanto, um direito à LGBTfobia cultural. Este argumento cai em pelo menos duas falácias: uma é a do relativismo moral, como se os direitos humanos fossem uma questão puramente cultural e que respeitar a liberdade, a igualdade e a dignidade de cada pessoa fosse matéria de opinião; a outra é a do desconhecimento do que é ser uma pessoa LGBT+ como se fosse um caso de simples escolha ou de influências exteriores. As pessoas LGBT+ sempre existiram e existem em todo o lado. Não ver ou não conhecer pessoas LGBT+ não significa que elas não existam, mas que as condições, no espaço e no tempo, não estão reunidas para que as pessoas se sintam seguras para viver as suas sexualidades e identidades de forma visível.
As pessoas AfroQueer existem! Nós existimos! Fabrice Nguena no seu livro intitulado justamente AfroQueer defende que são pessoas que acumulam duas identidades interseccionais. O “Afro” serve para designar as “pessoas africanas negras ou afrodescendentes” e o “Queer” é um termo único para “designar as pessoas LGBTQI+ (…) que se identificam com uma identidade de género, uma expressão de género ou uma orientação sexual fora da norma social e que não aderem ao binarismo”. Alguns anos antes, o escritor brasileiro Pedro Ivo, no seu livro AfroQueer – Existência: dor, luta, amor (Pâde Editorial, 2018), propunha a seguinte definição: “Uma autoidentificação híbrida de dor, luta e amor, que perpassa pela crítica aos padrões normativos impostos pela branquitude e pela cisheterossexualidade compulsória na sociedade; padrões estes existentes inclusive dentro da(s) comunidade(s) lgbt+, tal qual nós negrxs de sexualidades e/ou identidades de gênero dissidentes e periféricas temos percebido, estudado e cotidianamente vivenciado (…).”
Estes autores AfroQueer rejeitam a ideia de uma qualquer influência “branca colonial”, e, pelo contrário, denunciam a propagação da LGBTfobia através da colonização, através de, entre outros instrumentos, da imposição da religião católica e da proibição de práticas culturais ancestrais que proporcionavam um terreno seguro para as pessoas LGBT+. Nesse sentido, a escritora franco-camaronesa Léonora Miano, citada por Fabrice Nguena, defende que “a homofobia em África vem do facto que os africanos não conhecem a sua história, não sabem que existiram relações entre homens e entre mulheres, em várias sociedades, bem antes da colonização”. As pessoas AfroQueer existem e sempre existiram!
(Transcrito do PÚBLICO)