A versão brasileira de “A História Oficial”
A História foi resgatada e, finalmente, preservada
atualizado
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A partir dessa brilhante e histórica conquista da talentosa Fernanda Torres, premiada com o Globo de Ouro de melhor atriz, creio que um novo despertar para a sociedade brasileira passou a ser algo palpável. Por um lado, porque mexe com o contexto das fragilidades políticas, comuns à nossa Historia. E, por outro, com um sentimento de identidade cultural, que a nação precisa ainda dat conta dele. Afinal, lições precisam ser consideradas, justo porque se costumam extrair as melhores percepções dos fatos, quando o momento se traduz por alguma forma de euforia.
Se, na essência do talento profissional de Walter, fez-se um filme com uma delicadeza instigante, por essa trilha, resgato na minha memória uma experiência próxima ocorrida aqui do lado, na Argentina. Penso que há uma dose pertinente de similaridades, precisamente, pelo significado da vitória alcançada pelo filme “A História Oficial”, no Oscar de 1977. Dessa sincronia de fatos e enredos, como exercício complementar, posso ainda buscar na minha memória, outras “histórias oficiais”. As que se fazem mais presentes à realidade brasileira, num efeito reativo ao êxito do filme, devido a alguns temas associados, que estão aí nas pautas da política e da cultura. E tudo isso tende a reforçar um reconhecimento dos méritos que o filme e Fernanda estão agora por colherem, de tal forma que já se instaurou um sentimento maior de que o Oscar estará a um passo de ser alcançado.
Aperto, então, o “botão de comando do modo Brasil”, para que essa minha abordagem tenha aquela conquista argentina apenas como uma mera referência. Há mesmo lições para serem extraídas dessa conquista gloriosa de Fernanda. De temas simples e palpáveis, até os mais complexos e, aparentemente, distantes. No reforço dos meus argumentos, aproveito-me da mesma semelhança que ensejou aquela conquista internacional com o devido gabarito de ser o primeiro Oscar argentino. Faço uso desse recurso, não só pela sintonia do enredo desse filme com a história real vivida pela brava Eunice Paiva, interpretada por Fernanda. Nesse impulso, também aproveito o simbolismo do título, para destacar outras histórias oficiais, que por esse momento da cultura e do audiovisual poderão ajudar a construir e fortalecer novas percepções da História, junto à sociedade brasileira.
De pronto, a realçar aqui a própria essência do filme, enquanto esforço de um reforço histórico, para resgatar uma dura verdade, que nunca fez parte do “roteiro oficial”. Neste aspecto, o texto original de Marcelo (o filho que, em comunhão com as irmãs, sofreu na pele os rancores políticos aplicados aos pais) e a direção competente e perfeccionista de Walter são lições extraordinárias. Aprendizado para quem não viveu ou nunca se interessou por saber de fatos postos na linha obscura da omissão. Assim, ao se “apertar o botão de comando” do nosso “modo brasileiro” de se ver pela tela, ficamos diante de uma nova (e nossa) versão de “A História Oficial”.
Nesse propósito, preciso ainda acrescentar que o filme faz sua narrativa política com o que chamei antes de “delicadeza instigante”, porque seu conteúdo transcorre sem ideologias provocantes ou posições panfletárias. O cerne da questão está sob a evidência de uma família angustiada, mesmo que vítima das agruras absurdas de um regime político. Uma sutileza em forma de inteligência emocional
Para seguir agora com “outras histórias oficiais”, o prêmio de Fernanda ainda fez valer o protagonismo feminino no papel de Eunice, não apenas exercendo a dureza que foi a vida dela, enquanto mulher, esposa e mãe. A condição pessoal de Fernanda atuar com sua própria característica feminina, de ser uma “homo culturalis” plena, com múltiplos talentos (atriz, roteirista, cronista e escritora) fez também a diferença. Ou seja, naquele esforço coletivo de todos que compuseram a produção, ela pode extrapolar sua missão artística que cabia ao filme. Nele e, acima de tudo, por ele (nas entrevistas,e nas conversas de divulgação), Fernanda foi bem além do ser, simplesmente, a atriz.
Por fim, essa conquista poderá ser traduzida por um ponto de inflexão tão necessário para este momento da cultura e do audiovisual, enquanto segmentos que dão tanta identidade ao Brasil. Isso, depois do mar de adversidades que todos passaram, no ofício honesto e produtivo de muitos realizadores comprometidos. Penso que se atingiu o momento de se revelar – sobretudo, para os desinformados e desconfiados – que essa tal identidade cultural é quem nos faz ricos e plurais. Formam contextos suficientes para provar nosso valor social e econômico. Com soberania, no duplo sentido. Assim, julgo que estamos prontos e maduros para o Oscar. E com ele calar a boca dos incrédulos e dos que agem na difusão odiosa sobre o trabalho dos profissionais das artes.
A premiação de Fernanda nos garantiu um passo importante para se avançar na direção de uma sociedade mais justa e desenvolvida. Com isso, a História foi resgatada e, finalmente, preservada. Entretanto, para eliminar os riscos de se trazer à cena episódios como os vistos em 08 de janeiro de 2023, parece-me válida uma sugestão criteriosa, que emanou de um político da estirpe de Cristovam Buarque, humanista e democrata. Inspirado pela emoção que o filme de Walter lhe passou, sugeriu um trabalho adicional educativo, com sessões públicas especiais, que provam mais conhecimento histórico sobre o real valor da democracia. Se a falta do atestado de óbito de Rubens Paiva foi o ponto comovente da nossa “história oficial”, a omissão dada por outras histórias, sequer garantiu o “atestado de óbito” de ideias golpistas, que resistem associadas aos desejos de se retomar um autoritarismo. E por meio de um regime militar. Assim, diz Cristovam, que tão importante quanto expor nossos jovens ao conhecimento desse triste passado é também submeter as distintas lideranças emergentes das Forças Armadas, aos princípios inalienáveis da democracia. Faz todo sentido, por mais que tenhamos inúmeros exemplos de militares conscientes do seu papel de respeito aos preceitos democráticos.
O filme “Ainda Estou Aqui” mexeu com o Brasil e pôs a democracia na ordem do dia.
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(*) Alfredo Bertini, economista, professor e produtor cultural da área audiovisual