A sustentável leveza de um livro (por Gustavo Krause)
O poder adoece. Enlouquece. Ungidos pela preferência popular, vários, certamente, seriam reprovados pelo teste psicotécnico
atualizado
Compartilhar notícia
O prazer e os benefícios da leitura associam os olhos que veem, a imaginação que enxerga e constrói um percurso de sensibilidade, intuição, criação, admiração, questionamentos e fenômenos que se refugiam no mundo desconhecido. Vem daí, o espanto que, no sentido grego, é o ponto de partida do pensar criticamente sobre experiências, em especial, chocantes e ameaçadoras.
Neste sentido, o livro de autoria de Ariel Palacios, América Latina – lado b. O cringe, o bizarro e o esdrúxulo de presidentes, ditadores e monarcas dos vizinhos do Brasil, é espantoso. O autor está coberto de razão quando afirma: “No que concerne aos líderes políticos da região, a realidade supera amplamente a ficção”. De fato, é Realismo Fantástico (ou mágico) na veia dos leitores.
Embora não seja o foco de Palacios, a obra, ao apontar para uso, abuso e crimes do poder cometidos pelos ditadores, déspotas, tiranos, todos mentalmente doentes, estimula a reflexão sobre a enfermidade psicológica que o poder inocula nos líderes paridos, também, pelas urnas. O poder adoece. Enlouquece. Ungidos pela preferência popular, vários, certamente, seriam reprovados pelo teste psicotécnico.
Em quase quinhentas páginas, o histriônico e o estúpido convivem entrelaçados. O livro mergulha na história e nas culturas de vinte países encravados no território da América Latina. Informa, instrui, diverte. A narrativa é tragicômica. Emociona. O que dá para chorar, dá para rir, por conta do senso de humor que empresta leveza ao conjunto da obra.
Comentar a extensa e enciclopédica jornada do autor (começa com o México) exigiu uma difícil escolha. Fui seduzido pelo subtítulo do capítulo Argentina: Pais necromaníaco, o leitão afrodisíaco e o defunto conselheiro presidencial canino.
Transformada na “mãe dos pobres”, a morte de Eva Perón mitificou a esposa de Presidente Juan Perón. Embalsamada, foi velada por 14 dias. O plano do marido era construir um megamausoléu, três vezes maior do que o Cristo Redentor e 45 metros mais alta do que a Estátua a Liberdade. Perón, deposto, o corpo de Evita foi sequestrado pelos militares numa peregrinação clandestina de 1955 a 1977 até que, com a ajuda do Vaticano, foi enterrado num cemitério de Milão com um nome falso. Somente em 1974 o corpo é devolvido a Buenos-Aires (antes, 1971, foi exumado e transportado para a residência de Perón exilado na Espanha). Hoje, ela descansa no cemitério da Recoleta e Perón no de Chacarita.
A morte de Perón foi um espetáculo chocante (1974). Minutos após o óbito, narra Palacios, a figura influente e sinistra, José López Rega: “Segurando o corpo pelas canelas de Perón, o esdrúxulo El Brujo fechou os olhos e começou a gritar: ‘meu faraó não vá embora […] Acorda meu faraó’”. Diz o escritor Eloy Martinez: “A necromancia é uma coisa típica dos argentinos, tal como o doce de leite”.
O episódio do “leitão afrodisíaco” (e tanto outros) protagonizado pela extravagante e verborrágica Presidente Cristina Kirchner ocorreu numa das 118 vezes em que ocupou a rede nacional de TV (em quatro anos seu marido discursou duas vezes). Em fevereiro de 2010, fez a apologia da carne suína como afrodisíaco: “É mais gratificante comer um leitãozinho na grelha do que ter que usar viagra”.
Dando um salto no tempo, a bola da vez é Javier Milei, El Loco, apelido que vem da adolescência por conta do estilo de defesas do goleiro na época em que jogava no juvenil do clube Chacarita.
Com crenças ultraneoliberais, Milei acredita piamente que Deus é libertário e lhe reservou uma missão. Utiliza serviços de parapsicólogos para entrar em contato com seu cão falecido, Conan, um mastim inglês, que lhe passa “conselhos do além”. Conheceram-se há dois mil anos no Coliseu Romano, ele, um gladiador e, o cão, um leão. Não lutaram. Estava dado o sinal de que se ajudariam no futuro.
Sobre o assunto, disse Milei: “O que faço com a minha vida espiritual dentro de minha casa é assunto meu. Se Conan me assessora na política, significa que é meu melhor consultor”.
Hesitei. Corta daqui, corta dali, estava convencido de que, pelo menos o México merecia uma referência ao seu primeiro grande caudilho, General Antonio Lopez de Santa Anna. Entre 1833 e 1885 foi presidente onze vezes, que somados, totalizaram cinco anos e seis meses.
Na ridícula “guerra dos bolos”, os reiterados calotes e badernas dos oficiais mexicanos no restaurante do francês monsieur Remontel, resultaram no conflito armado com tropas francesas, em Veracruz, ferindo gravemente o General Santa Anna que teve uma perna amputada.
Quatro anos depois (1842), na condição de Presidente, ordenou e comandou, com pompa e circunstância, o funeral do membro inferior.
Com efeito, esta antologia de excentricidade, corrupção e demência dos governantes não é um distintivo dos países da América Hispânica e Caribe. Nós temos consciência dos brasileirismos exorbitantes, do imortal festival de besteiras que assola o país e do delinquente compadrio.
Ao não incluir no livro o lado B do Brasil, Ariel Palacios invocou o mítico personagem de Dias Gomes, Odorico Paraguaçu, prefeito de Sucupira, símbolo e síntese, de traços marcantes da nossa cultura política.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda