A soberania e o território ameaçados (por Joaquim Falcão)
Cabe a Elon Musk dizer o que é liberdade de expressão?
atualizado
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Elon Musk e os deputados republicanos invadiram, ofenderam a soberania do Brasil? A tal ponto do Supremo e governantes terem que responder? Não sei.
Mas sei sim que nossa soberania e, por consequência, nosso território estão ameaçados.
Soberania se constitui quando um povo encontra um território a ser chamado de seu. Ali se estabelece. Faz-se nação. Poder maior a ser obedecido internamente. É o direito de ser a única voz a dizer o Direito. E limite intransponível a ser respeitado pelas demais nações.
Porém, a soberania não é pacífica. É disputada. Por isso, múltiplas são as ameças a ela e ao território. Ameaças externas e internas. Ameças imateriais e materiais.
Antes as ameaças, invasões, guerras eram por meio de forças armadas. Físicas, materiais. Hoje não mais apenas.
Nosso território está multiameaçado. Corroído por fora e por dentro.
O episódio Elon Musk é apenas sintoma de problemas maiores. Sua “invasão” exemplifica a corrosão imaterial e transnacional que pode ter consequências no território material. Basta lembrar: sua Starlink faz parte do quotidiano de milhares de brasileiros da Amazônia e de outras partes nas quais não chega o Estado.
A reglobalização é a arena das disputas entre soberanias entre si, soberania e big techs, e até entre indivíduos com poder e expertise cibernéticos. Terra sem lei.
A aparente soberana jurisdição constitucional, neste contexto, é incapaz de vigiar e punir. Tenha ela a voz do Supremo, Congresso ou Presidência. Ou dos três. É uma reação de horror. Lembra O Grito de Edvard Munch.
Mas aí cabe a Elon Musk dizer o que é liberdade de expressão? Também não.
Reações locais acariciam o orgulho nacional, mas causam danos pequenos aos invasores globais. Qualquer análise custo-benefício entende. O invasor perde pouco localmente e ganha muito globalmente.
Santos Dumont inventou, glorificou-se, deprimiu-se e se suicidou ao ver o uso do ar como espaço de guerra. Nesta reglobalização, um dos espaços de guerra será também a nuvem — a do armazenamento. A luta será pelo controle das clouds, onde estaremos todos nós em forma de dados.
O inventor do modelo de redes sociais que conhecemos — Mark Zuckerberg — também se deprimiu. Com muito menos tragédia, pediu desculpas pelo que fez com os dados nossos. Mas só. Já está feito.
Eleições já foram influenciadas. Dados já foram vazados a companhias. Informação tão preciosa que é considerada o petróleo do século XXI. A “mineração” de big data não pode cair nas mãos de “garimpeiros ilegais” digitais.
Nada é novidade. A soberania do território é corroída pela imaterial politica financeira e cambial do Federal Reserve. Recentemente, também pelas epidemias.
Outra ameça à soberania e ao território, fruto dos tempos modernos, é a interna. No Brasil, pipocam sub-soberanias. Fácil perceber.
O Estado Democrático de Direito perde diariamente território jurisdicional para milícias, bicheiros, traficantes, mineradoras, garimpeiros, madeireiros, construtoras ilegais e tantos mais.
A captura do território implica na criacão de sofisticadas cadeias de produção espalhando-se por todo o país. Sua especialização, seu produto principal, é o delivery.
Investem cada vez mais em logística pesada para o transporte de drogas. Capaz unir logística aérea, rodovias, ferrovias, transporte urbano. Do produtor diretamente ao consumidor. Monumental logística de transporte. Sofisticada. Apoiada em aplicativos, inteligência artificial e tanto mais.
Depois de ganharem o controle dos territórios nos grandes centros urbanos — favelas, comunidades, condomínios populares, mesmo algumas construções de Minha Casa Minha vida —, as sub-soberanias partiram para o controle de delivery local de energia e gás. Ganharam.
Controlam o acesso. Com isso, ganham mercado sem precisar se preocupar com produção.
Informações indicam que algumas milícias já controlam cerca de mil postos de gasolina. O que existe de mais inseguro do que um solitário posto de gasolina no meio da noite? O que existe de mais ameaçador do que o controle de milhares de postos de gasolina nas mãos erradas?
Como então nos defendermos destas ameaças dos novos tempos, vivemos uma soberania limitada? Meia soberania não é soberania.
Ninguém sabe o que fazer. Sobretudo como fazer bem.
Para sabermos o que fazer, contamos já com pessoas e instituições mobilizadas e competentes. E conscientes. Para tanto, foi criada a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Na sociedade civil, os exemplos são muitos.
Não é normal — preocupa-se e mobiliza a mídia Carlos Alberto Sardenberg.
Precisamos criar e implementar estratégias para competir na cena internacional — lidera o cientista Silvio Meira, do CESAR, no Recife, que sabe como fazer.
É indispensável conhecer melhor o Brasil — aponta o excelente Marcelo Nery, da Fundação Getulio Vargas.
Vamos reimaginar os centros urbanos e reconquistar a soberania interna — diz e faz Washington Farjado, agora no Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID).
Se as circunstâncias mudam, você tem que mudar também, ensina Lorde Keynes. A soberania também. Se não, deixa de ser soberania.
Joaquim Falcão é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst)