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A resistência da senhora ucraniana (por Marcos Magalhães)

“Por que vieram aqui com armas? Leve no bolso essas sementes de girassol, para que elas brotem quando vocês morrerem aqui”

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Anton VergunTASS via Getty Images
REGIÃO DE BELGOROD, RÚSSIA - 26 DE FEVEREIRO DE 2022: Uma coluna de veículos militares russos é vista perto da vila de Oktyabrsky, região de Belgorod, perto da fronteira russo-ucraniana. No início de 24 de fevereiro, o presidente da Rússia, Putin, anunciou sua decisão de lançar uma operação militar especial depois de considerar os pedidos dos líderes da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk
1 de 1 REGIÃO DE BELGOROD, RÚSSIA - 26 DE FEVEREIRO DE 2022: Uma coluna de veículos militares russos é vista perto da vila de Oktyabrsky, região de Belgorod, perto da fronteira russo-ucraniana. No início de 24 de fevereiro, o presidente da Rússia, Putin, anunciou sua decisão de lançar uma operação militar especial depois de considerar os pedidos dos líderes da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk - Foto: Anton VergunTASS via Getty Images

A cena se passa em uma praça na Ucrânia. Uma senhora se aproxima de soldados bem armados e questiona a presença deles em sua cidade. “Vocês são russos?”, pergunta ela, em cena gravada por um telefone celular e divulgada pela rede britânica BBC.

“Essa conversa não vai levar a nada”, responde o soldado, entre polido e duro.

“Vocês são ocupantes, são fascistas”, insiste a senhora. “Por que vieram aqui com armas? Leve no bolso essas sementes de girassol, para que elas brotem quando vocês morrerem aqui”.

“Essa conversa não vai levar a nada”, repete o russo. “Não vamos tornar as coisas piores”.

O diálogo ocorreu apenas um dia depois da entrada de tropas russas na Ucrânia. Ainda não haviam começado os intensos bombardeios. Ainda não havia mortos. Ainda não havia ameaças de uso de armas nucleares. Mas ali já se anunciava o clima hostil.

As cenas que se seguiram começaram a inquietar o mundo. Milhares de pessoas deixando as principais cidades da Ucrânia, em busca de proteção na vizinha Polônia. Mulheres sozinhas com seus filhos, maridos que ficaram para lutar. Olhares perdidos diante das câmeras que aguardavam os refugiados na fronteira.

As mesmas câmeras que registraram o sofrimento de levas de refugiados que chegaram à Europa em anos anteriores fugindo de conflitos como o da Síria. Só que agora havia uma diferença: não eram mais pessoas que escapavam de uma guerra civil. Eram refugiados que fugiam da invasão de um país soberano. Na Europa.

A fuga não ocorreu por causa de um conflito já em andamento e de difícil solução entre grupos rivais em busca do poder. O êxodo ucraniano nasceu da decisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, de enviar suas tropas para o país vizinho.

A nada

Como disse o soldado russo no pequeno vídeo divulgado pela BBC, a conversa com a senhora ucraniana provavelmente não levará a nada. Nos cálculos dos grandes estrategistas de relações internacionais ouvidos por jornais e redes de televisão o que se levou em conta, nos primeiros dias da guerra, foram os movimentos das grandes potências.

De um lado, a Rússia, sentindo-se ameaçada, decidiu colocar em prática a invasão da Ucrânia, depois de passar vários dias atribuindo os temores internacionais a uma “histeria do Ocidente”.

De outro, os Estados Unidos uniram-se à União Europeia para impor pesadas sanções econômicas à Rússia, que viu desabar o valor do seu rublo e que se viu isolada em terrenos nada bélicos, como o esporte e a cultura. Nada de jogos internacionais de futebol, nada de presença russa em competições europeias de música.

Os primeiros passos do conflito foram explicados por muitos adeptos da teoria realista das Relações Internacionais como um desdobramento quase inevitável de uma guerra surda entre grandes potências que se vinha desenhando ao longo dos últimos anos.

Putin nunca escondeu a sua irritação com o Ocidente pelo que considerava um cerco militar a seu país. De fato, desde o fim da União Soviética, os Estados Unidos estimularam a expansão a leste da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Primeiro a países da Europa Oriental que pertenceram ao Pacto de Varsóvia, depois a países que faziam parte da URSS.

A possível adesão da Ucrânia – embora não estivesse prevista para ocorrer tão cedo – representaria uma espécie de linha vermelha que não poderia ser ultrapassada. A presença de tropas da Otan e de possíveis armas nucleares a poucas centenas de quilômetros de Moscou seria inaceitável.

Putin tem seus motivos de preocupação. E, sim, a expansão a leste da Otan pode mesmo ter levado os russos a se sentirem ameaçados. Ou, como dizem as autoridades chinesas, não parece sensato encurralar uma grande potência.

Reação

Segundo a visão realista de mundo, os Estados nacionais se movimentam em busca da autopreservação. Questões éticas e morais estão fora da equação. E o que define as relações internacionais, no final das contas, são as relações de poder. Brutas relações de poder.

Por mais que se trate de uma lamentável invasão de Estado soberano, prossegue o argumento, o movimento teria que ser entendido como uma esperada iniciativa. O mundo é assim.

Será? Durante vários séculos, de fato, governantes de países europeus tomaram iniciativas semelhantes. Faziam seus cálculos de poder, dimensionavam as capacidades militares e partiam em guerras de agressão. Até a Segunda Guerra Mundial.

De lá para cá, apesar de todas as imperfeições, prevaleceu uma ordem internacional onde a guerra deixou de ser uma opção natural. A invasão da Ucrânia vira a página da história. E nada indica que ela esteja perto do fim.

A primeira reunião entre enviados russos e ucranianos para discutir um possível cessar-fogo terminou sem solução. Marcou-se, ao menos, uma nova reunião.

A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas reuniu-se na segunda-feira para debater a questão. Logo após a abertura, o secretário-geral António Guterres disse que era hora de “dar um basta no conflito” e considerou “petrificante” a ameaça de uso de armas nucleares.

Como lembrarão os teóricos realistas, a Assembleia-Geral não tem poder de decisão. E a Rússia permanece segura com seu poder de veto às decisões do real órgão decisório, o Conselho de Segurança da ONU.

Como diria o soldado russo à senhora ucraniana, “essa conversa não vai levar a nada”. Pode ser. Mas a História é curiosa. Esta é uma guerra transmitida ao vivo pelas redes sociais. Os bombardeios, as mortes de civis, os engarrafamentos nas estradas, o desespero de quem tenta deixar Kiev, tudo isso está nas telas de celulares e de aparelhos de televisão em todo o mundo.

Além da reação dos governos ocidentais à invasão, existe a reação das ruas. Centenas de milhares de pessoas saíram de casa para protestar em cidades como Berlim. Apesar da censura e da repressão policial, centenas de manifestantes protestaram na própria Rússia.

Putin tem a força das armas. O maior arsenal atômico do mundo está a seu alcance. Do outro lado está uma obstinada população ucraniana, disposta a resistir com facas e coquetéis molotov. Está também uma opinião pública mundial majoritariamente contrária à invasão.

A paz mundial está em risco, enquanto uma pandemia insiste em causar milhares de mortes em todo o planeta. A disputa militar pura e simples, acionada pelos russos como demonstração de força, pode fugir ao controle e contagiar a Europa. Os exemplos históricos não são promissores.

 

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