A política e o judiciário (por André Gustavo Stumpf)
Ministros se deixam envolver por debates de cunho político-partidário
atualizado
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Houve um tempo no Brasil em que ministro do Supremo Tribunal Federal era escolhido pelo notável saber jurídico, vida ilibada e convivência na sociedade. Ou seja, uma pessoa normal com alta qualificação na área do direito e absolutamente incorruptível. Distante dos problemas cotidianos, era convocado apenas para dirimir grandes questões nacionais e não manifestava sua opinião em absolutamente nada, além do que viesse ser questionado nos autos de um processo. Que, aliás, não tem capa, como sentencia o ministro aposentado do STF, Marco Aurélio Mello.
Esse entendimento fazia do juiz, desde a primeira instância até os mais elevados tribunais, uma espécie diferente de cidadão. Tranquilo, recluso, confinado pelos limites de seu conhecimento, o comportamento do jurista era tão rigoroso que, vários deles eram professores universitários, não davam opiniões sobre temas que poderiam vir a ser objeto de controvérsia jurídica. Em sala de aula era comum alunos provocarem professores, mas a maioria deles não dava um passo além do sério compromisso com a ética.
Nos anos setenta, quando ocorreram os primeiros movimentos a favor da abertura política, houve um ministro do STF que se declarou claramente a favor do restabelecimento dos direitos do cidadão, do habeas corpus e pelo fim da censura aos jornais. Foi Aliomar Baleeiro, baiano ilustre, que tinha origem na UDN. Na questão política, a posição do ministro era clara, mas nos assuntos contidos nos autos sob sua guarda, ele só se pronunciava no momento certo. Nem antes, nem depois.
A TV Justiça, que faz excelente trabalho na divulgação das decisões do STF, contribuiu para a desinibição dos ministros. Nos momentos de tensão política, a audiência da emissora especializada em assuntos jurídicos é sintonizada em todo o país por advogados, juízes, ministros e a população em geral. Assim, os ministros passaram a ocupar espaço público. Em alguns momentos, disputam exposição com artistas de primeira linha.
O presidente Bolsonaro criou outro quesito a ser preenchido por candidato a ministro do STF. Ele deve ser terrivelmente evangélico. Os ministros Nunes Marques e André Mendonça foram nomeados com base na sua inclinação religiosa, sem embargo de seu conhecimento jurídico. Prevaleceu na nomeação a vocação evangélica que foi louvada em alto e bom som pela primeira-dama. O ministro Nunes Marques reconheceu o favor e reverteu o julgamento feito no TSE que cassou o deputado estadual Fernando Franceschini. A Segunda Turma do STF desfez o entendimento e manteve a cassação.
O resultado do julgamento do deputado bolsonarista enfureceu o presidente da República. Ele perdeu a compostura, xingou os ministros e os qualificou como canalhas. Tudo por causa de uma decisão no outrora discreto e silencioso Supremo Tribunal Federal. Hoje, o tribunal é balançado por violentas discussões internas, querelas pesadas entre ministros, votos tendenciosos de um lado e de outro. Tempos atrás, o ministro Edson Fachin decidiu, monocraticamente, que o julgamento do ex-presidente Lula continha grave erro processual. Não poderia ter sido realizado em Curitiba, mas no Rio de Janeiro ou em Brasília. Sua decisão mudou a política brasileira. Lula foi libertado e hoje disputa com Bolsonaro a presidência da República.
A consequência desse novo caminho empreendido pelo Supremo Tribunal Federal modifica a essência e a qualidade da política nacional. Ministros se deixam envolver por debates de cunho político-partidário. Discutem em público, abrem seus pontos de vistas ao conhecimento geral, e ainda justificam seus votos, como recentemente fez André Mendonça. Não tenho conhecimento de ação semelhante de Ministro do Supremo justificar no twitter voto dado no plenário do mais alto tribunal brasileiro. É o caminho para perder a condição de pretório excelso, colegiado de homens e mulheres acima de qualquer suspeita e donos de invulgar conhecimento jurídico.
Na psicanálise há uma etapa do tratamento que consiste em desconstruir o paciente para reconstruí-lo com base em novas descobertas. O Brasil parece estar passando por fase semelhante. O Tribunal de Contas da União não é órgão do judiciário, é apenas assessor da Câmara dos Deputados, mas seus integrantes são chamados de Ministros. Os ministros dos tribunais superiores participam da política em conversas fechadas e negociações. Quando o judiciário entra na política, a Justiça passa a ser menos isenta. Veja-se a perseguição que está ocorrendo contra Sérgio Moro, que teve a petulância de desafiar o poder judiciário com a operação lava-jato. Colocou a corrupção a vista de todos. Está pagando alto preço pela ousadia.
André Gustavo Stumpf, jornalista (andregustavo10@terra.com.br)