metropoles.com

A mesmice (por Gaudêncio Torquato)

A luta política, que se trava na arena do processo eleitoral, é a teatralização de uma velha guerra que exibe perfis costumeiros

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Vinícius Schmidt/Metrópoles
imagem colorida mostra plenário da Câmara dos deputados - Metrópoles
1 de 1 imagem colorida mostra plenário da Câmara dos deputados - Metrópoles - Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

Ano vai, ano vem, tudo é “como dantes no quartel d’Abrantes”. O Brasil abre a Assembleia Geral da ONU com o discurso de seu presidente, os candidatos às eleições municipais entoam o hino de promessas de sempre, o desgoverno paira sobre os protagonistas em todos os espaços, segue a vida aos trôpegos.

Um sentimento de mesmice invade a alma nacional. A luta política, que se trava na arena do processo eleitoral, é a teatralização de uma velha guerra que exibe perfis costumeiros, bordões gastos (como esse enjoado “fulano fez, fulano faz”) e nenhum elemento de diferenciação. O repertório de denúncias diárias, ao contrário do que seria de esperar, tem o efeito de anestesiar a sociedade. A pessoa se belisca e não sente dor.

A repetição cansativa de escândalos embrutece a sensibilidade, como se uma pesada camada de chumbo passasse a cobrir os nossos corpos. O Brasil pega fogo. O governo confessa não estar preparado para enfrentar a tragédia. Parece um velho trem chegando ao fim da linha, despejando fumaça por onde passa. Reativo, perdeu o comando da ação. Os governadores estaduais se assemelham a dândis no baile do meio do mandato, que mostra sinais de cansaço da orquestra. Parlamentares correm pressurosos ao balcão das reclamações para saber se suas emendas chegaram aos currais eleitorais.

O governo Lula III começa a ser atacado por inação. E nem pode berrar alto porque é refém de três barbáries que ameaçam a precária governabilidade: as barbáries tecnocrática, política e gerencial.

A barbárie tecnocrática é responsável pela imprevisibilidade e improvisação do Governo, pela departamentalização da eficácia econômica e pelo desprezo ao cinturão político. O excesso de gastos pode inviabilizar o terceiro mandato.  A barbárie política é o balcão das trocas. Um governo que anda na corda bamba de apoios que vão e vem. E a barbárie gerencial, associada aos vícios anteriores, consiste em ignorar a eficiência e a eficácia organizacional como elementos complementares básicos do manejo político e econômico. O excesso de ministérios não tem muito a mostrar.

Lula patrocina, em maior ou menor grau, cada pedaço dessas três barbáries. E o resultado aí está: a baixa capacidade de governo, o que comprova a tese muito difundida de que os dirigentes do nosso continente latino-americano, apesar de qualidades pessoais, têm dificuldades de lidar com a complexidade do Governo. A pior gestão, dizem os estudiosos de política, é aquela que consome o capital político do governante sem alcançar os resultados anunciados e perseguidos e isso ocorre por mau manejo técnico. Os dirigentes esquecem os compromissos e as demandas populares, esquecem de fazer o balanço da gestão e, principalmente, não a projetam para o futuro.

Os políticos, por sua vez, aproveitam-se das circunstâncias para tirar proveito. A crise passa a ser oportunidade para aumentar o capital. O Parlamento torna-se um amplo confessionário de pedidos. Na esfera do Executivo. os governadores, no meio do mandato, parecem desmotivados. Já deram o gás que tinham de dar, suas equipes deitam-se na cama do ócio, enquanto os círculos mais íntimos locupletam-se de benesses. A reta final da administração precisa receber altas dosagens de oxigênio e vitaminas de energia.

A tecnocracia federal, essa também, precisa ser submetida a um forte impacto. Está anestesiada. Não ouve o grito rouco das ruas. Está hibernando em densa e fria camada de gelo. Procurar a bússola perdida, caminhar na direção correta, processar com eficácia as ações, ter capacidade para gerenciar problemas e encontrar soluções, evitar fricções irreparáveis, entrar em regime de mutirão, buscar intensamente o foco – essa é a alternativa que resta aos governantes. Só assim poderão despertar os sentimentos adormecidos da sociedade e gerar novas percepções.

De tanto olhar a escuridão, o olho se acostuma a olhar para o nada. E não percebe os vazios do ambiente. É mais ou menos assim o olhar dos governantes e políticos. Há imensos vazios no espaço social. Por isso, os eleitores estão distantes dos velhos atores, a uma semana do pleito de 6 de outubro. Quem surgirá encarnando a voz da autoridade, o dom do equilíbrio, as aspirações mais legítimas da população, a força moral? Babel de linguagens tortuosas e bordões de promessas mirabolantes, quem deverá dar o tom é o clamor da indignação social. O povo continua a esperar que os figurantes eleitos cumpram seu dever.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

Compartilhar notícia

Quais assuntos você deseja receber?

sino

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

sino

Mais opções no Google Chrome

2.

sino

Configurações

3.

Configurações do site

4.

sino

Notificações

5.

sino

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comBlog do Noblat

Você quer ficar por dentro da coluna Blog do Noblat e receber notificações em tempo real?