A impotência do Brasil
O próximo presidente terá um trabalho enorme para reconstruir a reputação do país
atualizado
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Editorial de O Estado de S. Paulo (25/9/2021)
O cientista político Joseph Nye conceituou como soft power a capacidade de determinados países de influenciar e seduzir outros por meio da inspiração evocada por seus valores, ideologias e modos de vida. Nye contrapôs esse tipo de poder, mais brando, ao poder bruto, coercitivo, tradicionalmente advindo da força militar e da pujança econômica.
Bem antes da conceituação do chamado soft power, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, já o tinha como a espinha dorsal do que viria a ser a doutrina diplomática brasileira. Ao mesmo tempo experiente e visionário, arguto observador da construção das relações de poder entre as nações, Rio Branco sabia que o lugar do Brasil no mundo não seria definido por seu poderio bélico nem por sua potência econômica, ambos muito aquém dos de países mais desenvolvidos.
Em grande medida, portanto, o Brasil é o que é hoje – um país de dimensões continentais que garantiu suas fronteiras quase sempre por meio de negociação e que é pacífico na relação com todo o mundo – graças à sua diplomacia. Uma das razões pelas quais o chefe de Estado brasileiro tem a honra de abrir a Assembleia Geral da ONU é o reconhecimento aos esforços do país para a criação da própria organização e, sobretudo, por seu histórico empenho em solucionar conflitos de forma pacífica.
Ao realizar o mais indigno discurso que um chefe de Estado brasileiro já ousou pronunciar da tribuna da ONU, o presidente Jair Bolsonaro, na terça-feira passada, não apenas envergonhou os concidadãos que deveria representar com honradez como minou esse longo e profícuo trabalho da diplomacia brasileira na construção da imagem do Brasil no exterior, e que tantas conquistas legou ao país. Hoje, o Brasil de Bolsonaro, que abandonou o poder brando em favor do poder truculento, na verdade é miseravelmente impotente.
A despeito das significativas mudanças de orientação política no curso da história republicana, jamais o país havia perdido de vista os pilares da doutrina diplomática consagrada em todas as Constituições desde 1891 – nem mesmo nos duros tempos da ditadura militar. “Um diplomata não serve a um regime, e sim a um país”, escreveu certa vez Rio Branco, ele mesmo um monarquista convicto que serviu brilhantemente a quatro presidentes da República entre 1902 e sua morte, em 1912.
Consta que Bolsonaro praticamente rasgou o discurso “moderado” redigido pelo chanceler Carlos França e pelo secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, almirante Flávio Rocha, e escreveu outro com auxílio do filho deputado, Eduardo Bolsonaro – que o pai queria ver embaixador nos Estados Unidos tendo como qualificação a experiência de ter “fritado hambúrguer” em uma lanchonete americana. De forma livre e consciente, o presidente decidiu ignorar sua responsabilidade como chefe de Estado e falar da tribuna da ONU diretamente a seus apoiadores mais amalucados. A versão final do discurso, como o mundo inteiro teve o desprazer de ouvir, é um amontoado de mentiras, distorções da realidade e teorias conspiratórias.
Ao mesmo tempo que nega peremptoriamente a realidade que o cerca, Bolsonaro não propõe nada em troca. Não é possível sequer afirmar que seu governo sugere nova política externa para o Brasil. Seu discurso “sem alma”, como bem classificou a colunista Rosângela Bittar, do Estado, foi tão desértico como sua agenda para o país.
Sob Bolsonaro, o Brasil foi de um importante interlocutor em questões de interesse global a pária internacional, a motivo de chacota. Isso nada tem de trivial. A faina do próximo presidente da República, seja quem for, para reconstruir a reputação internacional do país será árdua, tarefa que dará trabalho dobrado aos genuínos herdeiros de Rio Branco. É essa a dimensão dos estragos provocados pela pequenez daquele a quem, desafortunadamente, coube conduzir o país num dos momentos mais desafiadores da história.