A geração que cozinhava seus netos (por Felipe Sampaio)
O homem conquista o status de único ser vivo a fritar seus filhos e netos, com alcance inigualável na história
atualizado
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A humanidade caminha para se firmar como a única espécie animal que tem o hábito esquisito de se livrar de seus semelhantes usando o fogo, nas suas formas mais criativas.
Na antiguidade, por exemplo, o imperador Nero incendiou Roma ao custo de incontáveis vidas dos seus conterrâneos, inaugurando essa mania humana de queimar uns aos outros em larga escala. Na Idade Média, há quem diga que houve quase 50 mil condenações de mulheres à morte na fogueira, sob a acusação de bruxaria.
Já no século XX, uma nova safra de piromaníacos assumiu o comando das guerras modernas. Enquanto Hitler cremava em fogões industriais os corpos das milhões de vítimas de seus campos de concentração, a força aérea inglesa incinerava dezenas de milhares de civis alemães em bombardeios noturnos conhecidos como ‘tempestades de fogo’, como aconteceu na belíssima Dresden.
Por sua vez, os americanos literalmente derreteram famílias japonesas com duas bombas atômicas (anos depois, no Vietnam, usariam explosivos à base de napalm com o mesmo propósito).
Enganou-se quem achava que agora estávamos curados dessa obsessão por cozinharmos nossos pares. Nossa geração adotou um requinte técnico (menos primitivo e mais sutil do que as fogueiras) para transformar o mundo inteiro em um forno micro-ondas de fazer inveja aos maiores entusiastas dos arsenais nucleares.
Desse modo, o homem conquista o status de único ser vivo a fritar seus filhos e netos, com alcance inigualável na história. Em uma matéria publicada em 20/03/23, a Folha de São Paulo organizou com clareza os registros de que o aquecimento global é realmente o resultado da (ir)responsabilidade humana.
Para isso, a Folha comparou o agravamento das expressões utilizadas em cada novo relatório do Painel do Clima da ONU (IPCC) nas últimas três décadas. Em 2001, por exemplo, estava escrito “o aquecimento observado nos últimos 50 anos, provavelmente, deveu-se ao aumento nas concentrações de gases de efeito estufa”. Os termos evoluíram nas edições seguintes para “muito provavelmente”, depois “extremamente provável” e, na publicação mais recente em 2023, para “é inequívoco que”.
Ou seja, é inequívoco que nós humanos estamos cozinhando nossos jovens e crianças em banho maria (seja de modo culposo, ou mesmo doloso, levando-se em conta a nossa ficha corrida histórica).
A conclusão do último IPCC compartilhada pelo jornal paulista seria considerada alarmante por qualquer outra espécie animal que fosse capaz de ler: as pessoas nascidas neste século XXI, principalmente as que nasceram a partir de 2020, vivenciarão efeitos reais e graves da mudança climática, como migrações, fome, escassez de água, crises econômicas e energéticas, epidemias e conflitos.
Alguns especialistas entendem que já existem tecnologias capazes de reverter parte dos estragos e prover adaptações razoáveis ao restante deles. Outros, receiam que a questão não seja meramente tecnológica, e sim econômica, na medida em que a desigualdade social que move nossa ganância estrutural seja a lenha que anima essa fogueira (e ninguém queira pagar a conta das providências urgentes).
Nesse cenário, é previsível que as primeiras e maiores vítimas, como sempre, sejam as pessoas mais pobres, bem como as mulheres e as meninas. Vamos torcer para que alguém desligue o air fryer global enquanto ainda dá tempo. Caso contrário, os livros de história nos colocarão no topo do podium dos maníacos incendiários.
Felipe Sampaio: chefiou as assessorias dos ministros da Defesa e da Segurança Pública; cofundador do Centro Soberania e Clima; foi secretário-executivo de segurança urbana do Recife; atual diretor do SINESP no Ministério da Justiça e Segurança Pública.