A França no caminho do nosso futuro (Por Álvaro Vasconcelos)
A aposta de Macron é extremamente arriscada e perigosa. O partido de Le Pen tem hoje apoios mais amplos na sociedade francesa
atualizado
Compartilhar notícia
O resultado das eleições europeias em Portugal é uma boa notícia. O PS e o PSD, os partidos fundadores da nossa democracia liberal, continuam a representar cerca de 60% do eleitorado e a extrema-direita desce em relação às legislativas. Teríamos razões para celebrar se o nosso destino dependesse apenas das opções do eleitorado português. O nosso destino, porém, passa pelo futuro da União Europeia.
Fiquemos, para já, pelo futuro da democracia no nosso continente. E aqui, só podemos estar profundamente inquietos com a vitória esmagadora da extrema-direita em França, com 31,3 % dos votos – mais do dobro do Renaissance, o partido da maioria presidencial, que ficou em segundo lugar, com 14,6%.
Apesar das vitórias da extrema-direita em França e na Itália, e do seu avanço na Alemanha, há quem se congratule com a composição do Parlamento Europeu, onde os grandes partidos – PPE, Socialistas, Liberais e Verdes – mantêm uma maioria confortável.
Mas celebrar esta vitória é esquecer que a Europa é uma união de Estados onde a França é um país-chave, pelo seu peso demográfico, pela sua força militar e pela convicção europeísta de uma parte dos seus dirigentes políticos. Se a extrema-direita vier a vencer as eleições presidenciais de 2027, a própria existência da União Europeia estará em risco. Com Marine Le Pen no Eliseu, regressaríamos à Europa dos nacionalismos identitários, as relações entre a França e a Alemanha sofreriam uma fratura mortal e Putin teria um aliado em Paris.
É bom lembrar que enfrentamos uma guerra de agressão na Ucrânia e que a França é a primeira potência militar da União. Macron tem manifestado um apoio incondicional aos ucranianos, o que tem levado França a estar na mira de uma violenta campanha de desinformação e das ameaças de Putin. A gravidade da situação foi bem compreendida pelos ucranianos que manifestaram a sua inquietação com o futuro do apoio europeu, sobretudo numa altura em que se perfilam as eleições americanas de novembro.
Chegados aqui, tentemos perceber o que se pode passar em França. O Presidente Macron dissolveu o parlamento e convocou eleições antecipadas. A aposta de Macron é que volte a funcionar, pelo menos na segunda volta, o princípio do apelo ao voto no candidato do arco republicano com maiores possibilidades de vitória. Foi esse princípio que dificultou, no passado, a eleição de deputados da extrema-direita. Foi o arco republicano que permitiu a Macron derrotar Marine Le Pen, em 2022, por 58% dos votos contra 41%.
A aposta de Macron é extremamente arriscada e perigosa. O partido de Le Pen tem hoje apoios mais amplos na sociedade francesa, com uma agenda que já se banalizou. Depois de duas derrotas frente a Macron, Marine Le Pen iniciou um bem-sucedido processo de “desdiabolização”. Mesmo assim, ainda pode ser derrotada se a esquerda se unir à volta do programa do Partido Socialista (13,8% dos votos nas europeias) e dos ecologistas (5,5%) e assumir o princípio da desistência republicana, incluindo para os candidatos do LR (7,2%), o partido da direita democrática. A dificuldade vem do partido da esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon (LFI, 10%), que defende uma linha de rutura do arco republicano, na esperança de conseguir chegar à Presidência no meio do caos. Sem ele a aliança da esquerda é fraca, com ele é hoje extremamente difícil.
Até há pouco tempo, a esquerda esteve unida na NUPES, sob a liderança do LFI, graças aos bons resultados de Mélenchon nas presidenciais e o fracasso absoluto da candidata socialista, que não atingiu nem 2% dos votos em 2022. A NUPES rompeu-se com a dificuldade da LFI em condenar o ataque do 7 de outubro do Hamas.
Com o Partido Socialista a liderar uma união de esquerda, há possibilidade de emergência da necessária aliança entre a esquerda e o centro, à volta de um programa ecológico, de combate à desigualdade e solidário com o futuro dos ucranianos e dos palestinos, que permita a derrota de Le Pen já nas legislativas de 20 de junho.
A dissolução tem ainda outra faceta. Se a extrema-direita alcançar a maioria absoluta na Assembleia, um primeiro-ministro lepenista irá inevitavelmente sofrer com o desgaste da governação, o que pode impedir a vitória de Marine Le Pen nas presidenciais. Como a política externa e de defesa são competência presidencial, um governo de extrema direita pode ser um mal menor. Este é um cálculo ainda mais arriscado e incerto. Com enormes fricções entre o Presidente e o Governo, seria muito provável que os franceses atribuíssem os insucessos do executivo a Macron, um Presidente impopular.
A decisão de Macron é muito arriscada, mas tem, pelo menos, o mérito de vincar que a polarização do campo democrático não travou a ascensão da extrema-direita – pode mesmo ter sido a menos má das opções possíveis.
O futuro de França e da Europa joga-se na esperança de um compromisso da maioria dos franceses com os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, que se traduza em alianças e políticas capazes de os fazer perdurar.
(Transcrito do PÚBLICO)