A esquerda adora o povo – só falta confiar nele (João Miguel Tavares)
Deverão essas graçolas passar a ser criminalizadas por incitamento à discriminação?
atualizado
Compartilhar notícia
Talvez a polémica sobre a preguiça dos turcos e os limites da liberdade de expressão se resuma a isto: uma dissensão acerca do nível de confiança que cada um de nós tem na humanidade e na inteligência do próximo. Há gente – chamemos-lhes os optimistas – que acredita que as pessoas reconhecem declarações idiotas quando as ouvem, e por isso não precisam de ser protegidas delas. E há gente – chamemos-lhes os pessimistas – que acredita que as pessoas devem ser protegidas de declarações idiotas porque tenderão a ser contaminadas pela idiotice. Temos de ser justos: a humanidade oferece bons argumentos para os dois lados. Não faltam exemplos de momentos em que o povo foi arrastado por demagogos e se dispôs à prática das maiores barbaridades; e também não faltam exemplos em que o povo deu mostras de uma sensatez bastante superior à das elites iluminadas. Por formação, temperamento e convicção – se é que é possível distinguir tudo isto –, eu estou do lado do copo meio cheio. Sou um optimista antropológico, daqueles que acreditam que “o arco do universo moral é longo mas inclina-se no sentido da justiça”, como um certo dia disse Martin Luther King, e Barack Obama gosta de repetir.
Aquilo que vejo à minha volta, sobretudo em certos sectores da esquerda, é uma grande falta de esperança no progresso e na maturidade dos eleitores, que são vistos não como seres auto-suficientes e munidos de inteligência própria, mas como entes facilmente manipuláveis quando expostos ao “mal”. É daqui que vem a metáfora do ovo da serpente, que encara o Chega [partido de extrema-direita de Portugal] como uma espécie de mal absoluto em estado larvar, e que por isso necessita de ser vigiado e obsessivamente criticado de cada vez que diz uma alarvidade – porque, de outra forma, a serpente cresce. Digamos que o grande amor que a esquerda diz sentir pelo povo nem sempre se traduz em confiança na sua inteligência ou na bondade das suas motivações. É como se os eleitores, coitadinhos, sucumbissem com facilidade ao veneno da serpente por lhes faltar a perspicácia dos justos.
No entanto, tendo em conta que a alegada serpente ainda não parou de crescer ao longo dos últimos cinco anos, por muito que se tenha gritado contra ela (e gritou), pergunto-me se não seria mais inteligente colocar uma hipótese alternativa – a de que essa gritaria é a principal razão para o crescimento do Chega. Desde logo, porque a indignação geral é demasiadas vezes desproporcionada. André Ventura [presidente do Chega] diz uma palhaçada e ela é logo elevada ao expoente máximo do horror, garantindo-lhe horas infinitas de exposição mediática. Há uma imensidão de gente convencida de que a frase “os turcos são preguiçosos” deve ser classificada como discurso de ódio. Sendo eu um pobre alentejano que passou 50 anos a ouvir anedotas sobre compadres e chaparros, pergunto: deverão essas graçolas passar a ser criminalizadas por incitamento à discriminação?
Ventura diz uma parvoíce e a resposta consegue ser frequentemente mais parva do que a parvoíce original. Mas mesmo que aquilo que ele tivesse dito fosse bem mais do que uma parvoíce, e ultrapassasse os limites das ideias aceitáveis num regime liberal – já aconteceu, quando propôs o confinamento de ciganos a resposta só pode ser uma: explicar porque é que as suas ideias são más e perigosas e confiar que as pessoas percebam. Não há outra forma, porque é isso a democracia: convencer o eleitorado com a força dos argumentos, e não com gritos de indignação.
(Transcrito do PÚBLICO)