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A democracia no pico da crise (por Gaudêncio Torquato)

A polaridade, que alimentou a guerra fria durante quase meio século, agora desloca-se para a questão étnico-cultural

atualizado

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Agência Brasil
A imagem mostra duas manifestações, uma de esquerda e outra de direita, em momentos diferentes -- Metrópoles
1 de 1 A imagem mostra duas manifestações, uma de esquerda e outra de direita, em momentos diferentes -- Metrópoles - Foto: Agência Brasil

Uma lembrança.

Clístenes foi o legislador de Atenas, que introduziu um pacote de reformas consideradas fundamentais para o nascimento da democracia. Democracia: demo, povo, e kratos, poder soberano. O poder soberano ao povo. Isso em 514. a.C. De lá para cá, a participação popular na política se consolidou, a ponto de, hoje, ser um divisor de água entre as Nações, aquelas assentadas nos direitos dos cidadãos, e as que fincam suas estacas no terreno pantanoso das ditaduras, sob a mão de ferro de déspotas e sanguinários.

Uma observação.

Na contemporaneidade, a democracia ganhou impulso na corrente dos movimentos que elevaram seu ideário. Entre esses, o destaque vai para a revolução francesa, cujos pilares se fincam nas noções de liberdade, igualdade e fraternidade, difundidas no século das Luzes. A partir de 1793, os parisienses passaram a pintar as fachadas de suas casas com as expressões: unidade, indivisibilidade da República, liberdade, igualdade ou a morte. Na Constituição de 1848 o lema liberté, igualité e fraternité passou a constar como o vértice da República.

Outro movimento a ganhar destaque foi a revolução americana de 4 de julho de 1776. Que deu a independência dos EUA. Ideário: liberdade e igualdade de direitos, servindo de inspiração para outros movimentos semelhantes na América.

Sob esse pano de fundo, pisemos na realidade dos nossos dias.

A democracia vive um pico de crise. Está sob ameaça.

No berço da cidadania, a França, a extrema-direita avança a passos gigantes derrotando outros protagonistas do arco partidário, mostrando uma tendência ao radicalismo e afrontando a escala dos valores democráticos.

No Reino Unido, os eixos do conservadorismo liberal, após anos de mando, cedem lugar às estacas do trabalhismo. A sociedade inglesa, como outras no mundo, se mostra cansada. Saturada.

Noutra parte do planeta, o berço da maior democracia ocidental, os Estados Unidos da América, se vê às voltas com um outsider da política, um empresário do entretenimento, cujo slogan – o de resgatar a grandeza da Nação – esconde a proposta de fechar fronteiras aos imigrantes e a adotar uma política de terra arrasada no concerto das Nações. Ao mesmo tempo em que a comunidade assiste, perplexa, o calvário de um presidente, cuja senilidade deixa grande interrogação no ânimo dos cidadãos.

Emerge, nesses tempos perturbadores, a grande questão: afinal, o que se passa com a democracia? Por que o mundo atravessa momentos de tantas incertezas? Qual o motivo para tanta desesperança?

A resposta já foi dada por muitos historiadores e filósofos, mas as considerações de maior peso são de autoria do cientista social, Norberto Bobbio, o italiano que ponderou sobre as promessas não cumpridas pela democracia, A crise, portanto, tem um epicentro: a própria democracia. Que não deu provimento ao que constava em seu ideário.

A democracia não conseguiu propiciar acesso de todos à justiça. A democracia não conseguiu eliminar o poder invisível, incrustado nas malhas do Estado, o poder visível. A democracia não extinguiu os polos da oligarquia e os grupos de interesse que tiram proveito de sua fragilidade. E a educação, matriz para a elevação da cidadania, torna-se uma utopia. A desigualdade campeia. As injustiças se espraiam. A desordem se insere na ordem das Nações, abrindo territórios do terror e do caos, semeando uma cultura de ódios e vinganças.

Estamos vivendo um estado de guerra mundial. Mudou o polo em torno dos conflitos. Não se trata mais de esperar por uma III Guerra Mundial, de natureza eletrônica, desenvolvida com foguetes e ogivas nucleares. A guerra está aí, intestina, invisível, atravessando fronteiras, destruindo, matando, ferindo a sensibilidade e maltratando o orgulho das Nações. A guerra entre Rússia e Ucrânia já faz parte de um cotidiano de destruição. A guerra de Israel contra o Hamas é um cenário de carnificina.

Uma imensa estrutura comandada por um poder invisível, à base de guerrilhas urbanas, atos criminosos dispersos e muita brutalidade, está vencendo as batalhas da diplomacia e a gerência dos grandes projetos de paz. As guerrilhas urbanas matam mais que as guerras clássicas. A violência, inclusive em nosso país, é devastadora.

A polaridade, que alimentou a guerra fria durante quase meio século, criando tensões entre Norte e Sul, Leste e Oeste, agora desloca-se para a questão étnico-cultural e seus antecedentes históricos, fazendo emergir um discurso fundamentalista que passa a encontrar eco não apenas nas devastadas regiões da Ásia e do Oriente Médio, mas em territórios do mundo mais desenvolvido. Uma “guerra santa” instala-se no planeta.

Não se pode deixar de constatar a precariedade das articulações empreendidas pelas grandes potências para gerenciar as crises do mundo contemporâneo. A ONU está desacreditada. O que está faltando aos líderes para se chegar a um discurso de consenso? Vontade política, entre outras coisas.  A retórica da diplomacia de guerra tem canibalizado as ações práticas. Ou seja, discute-se muito para se fazer pouco ou quase nada. Ao perfil de alguns governantes, falta aquele valor que emoldura os perfis dos grandes líderes: grandeza.

Falta ao planeta um Clístenes disposto a plantar a semente da convivialidade e restaurar os vãos da democracia.

 

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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