A democracia em tempos periculosos (por Gustavo Krause)
Um sistema ameaçado nos quatro cantos do mundo
atualizado
Compartilhar notícia
A democracia ameaçada nos quatro cantos do mundo é percepção e sentimento generalizados entre analistas e espectadores atentos aos movimentos da conjuntura política global.
A explicação começa por uma razão natural: a democracia é um sistema aberto e espaço de competição pluralista dentro de regras legalmente estabelecidas.
No entanto, outra constatação aumenta as ameaças e os riscos da integridade democrática que é a insatisfação dos eleitores com os seus representantes. Os institutos que avaliam divergem na proporção ou na definição do “tipo” de democracia, mas convergem no mesmo diagnóstico: as lideranças e os governos democráticos contrariam os compromissos assumidos em atender as expectativas e anseios sociais.
Na introdução da recente publicação – a primeira é de 1996 e a atual de julho do corrente ano – O descontentamento da democracia: uma nova abordagem para tempos periculosos (Ed. Civilização Brasileira), o autor, Michael Sandel, destaca: “O descontentamento da democracia persiste. Amplificado pela pandemia, pela polarização política exacerbada, a injustiça racial recalcitrante e redes sociais tóxicas, ele se tornou mais agudo do que há um quarto de século – mais rancoroso e, até mesmo letal”.
A defesa da democracia merece atenção plena. É um permanente desafio da cidadania e das instituições que dão suporte e proteção ao sistema democrático. Ocorre que a desconfiança e a rejeição ao processo político tradicional empurram os eleitores na direção de figuras declaradamente populistas, autoritárias e patéticas.
No atual contexto, não há correlação entre a ameaça e qualquer outra variável como estágio econômico e, até mesmo, o nível da cultura política: o Brasil vive o sob risco; mas a grande e sólida (?) democracia americana, também.
O caso brasileiro merece atenção especial por conta do que alguns estudiosos chamam de “disfuncionalidades” estruturais do sistema político que dificulta seriamente a governabilidade e compromete a eficiência da gestão pública.
Neste sentido, com reconhecida autoridade profissional de pesquisador e cientista político, o professor Antonio Lavareda, em consistente artigo (Folha de São Paulo, edição de 09/3/23), adverte: “O atual modelo de votação proporcional sem ordenamento da lista de candidatos, combinado com grandes distritos eleitorais (estados), incentiva a competição interna desenfreada, danifica a coesão partidária e inviabiliza o vínculo de eleitores e partidos. País deveria adotar o modelo de listas ordenadas, em que se vota nas siglas, como forma de partidarizar a sociedade”.
Ao final de cada pleito, acrescenta: “Temos na Câmara Federal 513 empreendedores individuais […] Sem a necessária partidarização da sociedade a democracia brasileira seguirá politicamente invertebrada e mais suscetível que outras de vergar sob a demagogia e a violência dos seus inimigos”.
E o maior inimigo da democracia é o líder populista. O perigo está no fato de que o populismo não é uma doutrina. Carece de elaboração orgânica e sistêmica. Tem mil caras porque é uma forma de atuação política centrada nos interesses do “Povo” em contraposição aos malditos interesses das “Elites”. É dirigida por um “Líder” com carisma e missão salvadora.
Com esta “nobre” dimensão, conquista mentes, votos chega ao poder e dele se torna o dono. Todo cuidado e vigilância não são suficientes para se dar conta da praga até que instalada a autocracia.
No entanto, exibem características que expõem a farsa. Neste sentido, o cientista politico mexicano Enrique Krauze (mera coincidência) escreveu o impecável decálogo que revela o sujeito oculto da ação. É de uma precisão notável.
Por apego à paciência do leitor farei, apenas, algumas referências: o populista promete desatar a o nó da voz do povo, sufocado pelas elites, com mensagens emanadas de uma “raiva original”; ele é a autoverdade, tudo mais é mentira; destruir um “sistema” podre e imoral; desconstruir inimigos e amaldiçoar ex-amigos, utilizando com frequência uma teoria conspiratória; dizer e desdizer como permanente manobra diversionista; usar quaisquer meios para manter sua tropa engajada e, desta forma chegar à solução final: cancelar as instituições da democracia liberal.
Atenção, Giuliano da Empoli, autor de “Os engenheiro do caos”, previne quanto a versão digital do populismo: “É filho do casamento entre a cólera e os algoritmos”.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda