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A Copa do Mundo pode salvar a democracia no Brasil? (Por Juan Arias)

Com as cores da bandeira cooptadas pelo bolsonarismo, a Copa é oportunidade para os brasileiros recuperá-las para todos

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Jogadores da seleção do Brasil em pose de formação para foto em campo, com arquibancada de estádio ao fundo antes de jogo contra a Sérvia na Copa do Mundo do Catar. Eles usam camisa amarela e short azul - Metrópoles
1 de 1 Jogadores da seleção do Brasil em pose de formação para foto em campo, com arquibancada de estádio ao fundo antes de jogo contra a Sérvia na Copa do Mundo do Catar. Eles usam camisa amarela e short azul - Metrópoles - Foto: Justin Setterfield/Getty Images

Não posso me definir como um futebolista, embora com mais de meio século de trabalho jornalístico atrás de mim, seria tolo se não destacasse o que a jovem Flávia Oliveira escreveu no jornal O Globo: “Muitas vezes o futebol é mais do que um jogo. A Copa do Mundo é mais do que uma competição esportiva”. É o que está acontecendo hoje, talvez com maior intensidade do que em outros tempos em um mundo dilacerado e dolorido.

A Copa do Mundo mal começou e agora parece muito mais do que um jogo de bola. A ansiedade de um mundo carregado de incógnitas sobre seu presente e seu futuro de repente se concentra nela. A Copa do Mundo se apresenta no braço da política, das angústias das existências atuais e das incógnitas de uma guerra ainda indecifrável.

Escrevo do Brasil, pentacampeão mundial, onde, como em poucos países —talvez só na Argentina— o evento é sempre mais que um esporte. O futebol também está ligado a idiossincrasias, amores e desgostos, crises econômicas, mitos, política e destino do país.

O Brasil foi para a Copa do Mundo como seu maior campeão em dois dos momentos mais críticos e dolorosos de sua história, com uma democracia ameaçada por um golpe extremista e um regime machista de direita que transformou o esporte nacional em um trampolim para o salto para ninguém sabe onde.

Talvez como nunca vi, mesmo em tempos de ditaduras militares, o Brasil tenha aparecido para o mundo em busca de bizarras e perigosas soluções autoritárias que dividiram amargamente o país, criando um clima de guerra civil, com sua democracia seriamente ameaçada política e psicologicamente.

Tudo isso ficou claro na hora de se preparar para viver, curtir e sofrer com um evento nacional que envolve jovens e velhos, ricos e pobres, esquerda e direita, esclarecidos e analfabetos. Se algo é de todos e para todos no Brasil, sem distinções políticas, é o caso do futebol, termômetro da temperatura emocional e da felicidade de uma pessoa.

Este ano, de resto, com o agravante de uma democracia ameaçada. Com seus símbolos mais sagrados, como o verde-amarelo de sua bandeira, rasgados pelos ventos malignos que anunciam a perda da democracia. Ventos maléficos que engendraram o monstro de um autoritarismo ultrapassado e de uma defasada nostalgia de ordem e de valores estagnados do passado, em que o Mundial seria vivido com mais incógnitas do que nunca.

Uma pergunta tão óbvia quanto “o que vestir para assistir ao jogo?” tornou-se um problema existencial e político, pois as cores clássicas da liberdade e da bandeira estão se transformando nos ogros do bolsonarismo negro nostálgico de ditaduras, torturas e ditaduras ultrapassadas em um mundo que se apresenta disposto a superar o velho Homo sapiens para dar a vida a um salto no tempo que amedronta e exalta ao mesmo tempo.

E esse é o milagre que pode ter começado a fazer uma Copa do Mundo que o Brasil sonha em ganhar envolto nas cores amáveis de seu verde amarelo. De repente, tírios e troianos, defensores dos valores da liberdade e saudosos de velhas lágrimas existenciais, perceberam que estavam perdendo sua identidade porque colocavam sua liberdade em crise soprada pelos ventos ultrapassados das antigas ditaduras militares. E sentiram-se despojados da democracia, inimigos até na família, com velhos amigos envenenados.

A Copa do Mundo havia começado mal para o antidemocrático Brasil na estreia contra a Sérvia. Sua estrela cada vez mais desgastada, Neymar, o rei e favorito de Jair Bolsonaro, e a ascensão do democrata Richarlyson, cujos dois gols tocaram o céu e rodaram o mundo, começaram a aparecer como símbolos de que algo estava mudando.

De repente, até os mais duvidosos voltaram a usar as cores mãe do Brasil, as da democracia, porque são de todos. Até o novo presidente, o ex-sindicalista Lula da Silva, entendeu isso, aparecendo vestido de verde e amarelo, deixando no velho calção o vermelho de uma esquerda que os ventos da modernidade estão soprando para longe.

É cedo para dizer, mas este início de Copa do Mundo, para o Brasil, vença ou perca, começa a ser marcado por uma mudança mais profunda do que poderia aparentar na superfície. Parecia uma Copa do Mundo sem sal, com um mundo novamente ameaçado pelos velhos e temíveis tambores de guerra.

E, no entanto, os fortes ventos políticos de protesto com que nasceu parecem indicar, ao menos para o Brasil do futebol, que estamos diante de algo que mais uma vez significa mais do que apenas um esporte, pois envolve em sua essência os ventos benignos de liberdade e democracia que mais uma vez ofuscavam o país.

O Brasil está de volta aos trilhos. Oxalá a Copa volte a ser símbolo e bandeira de um povo que não se resigna apesar de todas as suas mágoas, suas trágicas desigualdades e suas ancestrais crueldades com os diferentes e com o meio ambiente, e segue lutando pelos valores, esses, sim, sagrados da liberdade. Sim, para todos e de todos, se se pretende que não seja só uma farsa.

 

(Transcrito do El País)

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