1984 não é aqui (por Gustavo Krause)
Na distopia tototalitária de Orwell, o Ministério da Verdade criou três slogans: Guerra é paz: Liberdade é escravidão; Ignorância é força
atualizado
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Reler um livro é um prazer renovado. A frase imortal do filósofo Heráclito: “Não podemos nos banhar no mesmo rio porque as águas renovam-se a cada instante”, não se aplica aos livros: a beleza da escrita parece água parada. O que muda é o banhista caso se disponha a reaprender, redescobrir novos mundos e recriar um novo leitor.
Imaginando que os meses tradicionais de fim de ano seriam mais amenos, me comprometi a reler três livros (não sou um “leitor voraz”, normal, apenas). Engano: os tempos sombrios, ferozes, seguem trepidantes. Ainda assim, segui o conselho do grande Nelson Rodrigues “Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia”.
Escolhi 1984 de Eric Blair, nome jogado ao esquecimento pela força do pseudônimo do George Orwell e quase uma dezena obras precocemente interrompidas, aos 46 anos, por uma infame tuberculose.
Irving Howe, editor e crítico literário americano, desfez minha dúvida: “Não é fácil imaginar que muita gente torne a reler 1984 espontaneamente: não há razão nem necessidade, pois ninguém o esquece”. Mas, precisa ser lembrado. Principalmente diante de autocratas declarados e enrustidos.
Diferente dos clássicos, uma vasta e atônita “fortuna crítica” não conclui se ele escreve sobre o passado, descreve o presente ou prediz o futuro. Não importa se a gente termina sem ter a resposta. Mais uma vez, Howe enxerga longe: “Se o mundo de 1984 se concretizar, ninguém o lerá exceto os donos do poder total; se o mundo de 1984 não se concretizar talvez as pessoas fiquem com a impressão de que o livro não passava de um mero sintoma de algum distúrbio privado, de um pesadelo”.
Assim carregamos 1984 como um pesadelo que é nosso. “Afinal de contas, diz George Parker, escritor e jornalista do New Yorker Times, a verdade revela-se a coisa mais frágil do mundo. O drama da política é o que está no nosso cérebro”. Winston, personagem central da obra, talvez seja o último sobrevivente dos tempos de antigamente.
Viveu no ambiente propício da distopia: a guerra permanente (Oceânia e Eurásia), o inimigo imaginário – Emmanuel Goldstein a ser exterminado, a opressão letal e a substituição completa do humano por máquinas obedientes para exercer a totalidade do mal.
Com efeito este é o ponto de identificação do horror de Orwell: os totalitarismos. Não escreveu sobre governos ou qualquer preferência política. Criou o “Organograma do Mal” sob a ubiquidade do Grande Irmão; Ministério da Verdade (que só mentia pela escuta de tudo pela Teletela); Ministério do Amor (controlado pela Liga Juvenil Antissexo); A Novilíngua (ou Novafala) em associação com a Polícia do Pensamento e o Duplipensar para extinguir a liberdade de pensamento, tudo envenenado pelo programa diário Dois Minutos de Ódio e a construção filológica de modo a conectar clichês, segundo Hannah Arendt, à banalidade do mal, com permanentes doses de arsênico.
Antes de qualquer insinuação, não me refiro a distopias nacionais, mas que elas existem, existem, rondam as pessoas e, perigosamente, a humanidade em territórios de dor e surtos de desesperança na síntese de três famosos slogans do Ministério da Verdade: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força” para os quais a moral a se extrair desse pesadelo perigoso parece simples: “Não deixe que aconteça. Depende de você”.
1984 não é aqui.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda