A escalada não é só no Médio Oriente (Por Carmo Afonso)
Se décadas de opressão e massacre não legitimaram os ataques do Hamas, eles não podem servir de justificação para a barbárie israelita
atualizado
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O nível de crueldade que caracterizou os ataques do Hamas no sábado foi desmesurado. Não falo apenas do número de mortos, feridos e desaparecidos. Falo de detalhes. Há detalhes de profunda malvadez nas imagens e nos relatos que tenho visto e ouvido. Falo de sofrimento que não precisaria de ter sido infligido para levar a cabo os ataques. Os milicianos do Hamas não se limitaram a matar. Torturaram e entregaram-se a práticas violentas que o próprio ódio não explica.
Entendo que reconhecer isto faz parte de qualquer análise que seja feita ao que se passou naquele dia e ao que se tem passado desde aí.
O problema é que as análises que tenho lido cristalizaram nesses acontecimentos. Debruçam-se sobre o horror dos ataques do Hamas e passam apenas de raspão pela chacina que ainda agora começou e que ameaça dizimar a população de Gaza. O problema não está apenas nas análises, que são seletivas. O problema está sobretudo em nós; no facto de a maioria dos europeus diferenciarem, e digo isto num sentido profundo, sangue israelita de sangue palestiniano.
Depois dos ataques de sábado, e em reação a eles, as forças militares israelitas estão a destruir Gaza e a matar centenas de pessoas. Morrerão as que tiverem de morrer. Entre as vítimas estão crianças e já vimos imagens tenebrosas de algumas. Os palestinianos de Gaza estão sem eletricidade, sem água e sem fornecimento de comida. Claro que fazer isto viola o direito internacional, mas, como são palestinianos, as instituições europeias não bradam aos céus. Esqueçam os crimes de guerra. Esses diplomas legais nunca entraram em vigor em Gaza.
Mas o mais extraordinário é que, enquanto os palestinianos de Gaza estão a ser massacrados, ainda está toda a gente presa ao rescaldo das consequências dos ataques do Hamas. A empatia pelo sofrimento dos palestinianos está nas ruas da amargura e não existe urgência em acabar com ele. São as imagens do festival de música que continuam a arrepiar. Gaza é apenas um lego cinzento que se esborralha facilmente com o fogo israelita e, mesmo que isso esteja a acontecer enquanto escrevo e enquanto leem, não é com os palestinianos que a maioria das pessoas se comove.
É fundamental que se reconheça que esta insensibilidade existe. Seria um primeiro passo para resolver o problema de racismo que impregna tanta gente. Mas, sobretudo, esse reconhecimento é fundamental para retomar o sentido de justiça que se perdeu no que diz respeito ao conflito entre Israel e a Palestina. Já agora, trata-se de uma ocupação repetidamente condenada pela ONU. Chamar-lhe conflito pode fazer esquecer o que nos trouxe até aqui.
Em Gaza são civis que estão a ser bombardeados. Tanta indignação – e justa – por o Hamas ter atacado civis e, na resposta ao ataque, estão a fazer precisamente o mesmo. Não é um grupo radical terrorista, é o próprio Estado de Israel e com a permissão da União Europeia, dos Estados Unidos e da NATO. Foi nisto que se consubstanciou o direito que todos expressaram reconhecer a Israel: o direito de se defender. A diplomacia mundial não teve nada mais a dizer.
Outra vez: os civis palestinianos parecem não ter o mesmo valor que os civis israelitas. Tudo indica que aquelas pessoas estão entregues à sua própria sorte, que é muito pouca. Nesta fase, quase ninguém se atreve a questionar a legitimidade de Israel para atacar civis. Os ataques do Hamas parecem ter legitimado tudo. Mas, da mesma forma que décadas de opressão e massacre não legitimaram os ataques do Hamas, eles não podem servir de justificação e legitimação para a atual barbárie israelita.
Por cá, já houve uma manifestação de apoio à causa palestiniana, mas foi interpretada como um gesto de apoio ao Hamas. Não é só Israel que está a confundir o Hamas com os palestinianos, essa confusão está generalizada. Isto é bem demonstrativo da solidão e abandono a que estão condenados.
Não foram os ataques de sábado a determinar a falta de empatia pela Palestina. Já vinha de trás. Em Telavive dois homossexuais podem andar na rua de mão dada e uma mulher pode vestir uma saia curta e combiná-la com um decote. Para muitos é quanto basta para tomar o partido de Israel. Mas a falta de compreensão das condicionantes culturais e religiosas dos palestinianos é simplesmente um sintoma de pouca humanidade. E é isso que mais se nota nos últimos dias: uma terrível falta de humanidade. Todos os ódios e preconceitos vieram ao de cima. A escalada não é só no Médio Oriente.
(Transcrito do PÚBLICO)