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ZIP 50: crônica da minha infância fazendo quadrinhos

Entre o fim dos anos 1980 e o começo da década de 1990, criei os Bilak, irmãos protagonistas de histórias sobre uma família disfuncional

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Há pessoas que pensam que sou obcecado por quadrinhos. De fato, minha esposa fica com olhos arregalados quando eu (invariavelmente) chego em casa com um novo monte de gibis (muitos que nunca lerei) para empilhá-los, sei lá, em algum canto ainda inexplorado.

O que pouca gente sabe, porém, é que já fui ainda mais obcecado por quadrinhos. Que hoje estou de boa, tratado (naquele limiar das doenças psíquicas). A questão é que, entre os anos de 1989 e 1996, produzi, para leitores que se contam nas mãos, mais de 100 gibis com um time de personagens criados na minha tenra infância e primeira adolescência.

Um típico gibi da família Bilak

Isso foi entre os 7 e os 14 anos de idade. O que aconteceu para que eu abandonasse a produção e me tornasse, mais tarde, crítico e professor na área das HQs? Como este é o 50º texto da ZIP (hurray!), resolvi pedir licença e dedicar esse espaço, numa pequena egotrip, a essa história.
Meu pai é um ávido leitor (sci-fi, best sellers, literatura brasileira), e eu e meus três irmãos (todos homens) fomos criados num ambiente fértil em histórias muito imaginativas.

Não lembro exatamente por que comecei a fazer quadrinhos, mas tenho certeza que li avalanches deles, de coisas básicas (Mônica e Disney) até leitura infantil avançada da época (Os Trapalhões, de Paulo Borges e Gustavo Machado, Turma do Arrepio, de Cesar Sandoval). Mais tarde, os super-heróis tiveram uma (meio nefasta) influência sobre meus gibis. Desde essa época, ambiguidade, amor e ódio aos mascarados carnavalescos!


Meus personagens são o que costumo chamar de “South Park avant la lettre”. Brinks, né, mas se tratava do universo infantil. Os Bilak (contração dos dois personagens principais: Biss + Halk) eram irmãos, em uma família disfuncional. Não que a minha família fosse disfuncional (pelo menos não exageradamente), mas creio que minha cabeça fosse, de alguma forma.

Meu pai é um homem gentil, mas eu o retratei como um tirano totalmente sádico (o Pailak) que humilhava os filhos. Minha mãe sempre foi mais durona, mas eu a ilustrei de forma bem mais passiva e inofensiva. Os Bilak (como eu mesmo) estavam cercados de homens por toda parte. O universo feminino foi surgir apenas mais tarde (por razões óbvias), quando eu já era um adolescente.

Uma história “roots” dos Bilak: 1992

 

Desde pequeno eu tinha uma obsessão incomum em retratar a idiotia. Os personagens do “universo Bilak” são quase sempre estúpidos, insípidos, retardados (de quando isso ainda não era tão politicamente incorreto). São todos eles crianças, mas isso não impede que sejam espinafrados por todo mundo por tomarem decisões estapafúrdias e falarem groselha a toda hora. Eu poderia dizer que havia uma vibe Irmãos Marx, mas seria mentira. Pelo contexto da época, certamente, era mais Top Gang ou Débi e Lóide.

Também havia tirinhas!

 

Os protagonistas eram Biss, aquela categoria de idiota que se acha inteligente, tão invocado quanto paspalho; e Halk, um tipo mais lento e apalermado. Eles eram uma espécie de alter-ego meu e do meu irmão caçula, Marcos, que teve de servir de cobaia para ler essas histórias (muitas delas horríveis) tantas e tantas vezes. Ao redor deles, mais personagens inspirados em amigos, como Cabeção, um cientista genial (meio copiado do Franjinha) e torcedor do Palmeiras; ou o maléfico Repete-Tudo, o arrogante ADP e o inofensivo Bababaca.

Essas histórias de humor se passavam numa Brasília do meu imaginário infantil, mas geralmente os Bilak se envolviam em confusões relativas à pauta do momento, fosse a posse de FHC, o filme Independence Day ou a crise no México! Depois, inspirados nos gibis Marvel e DC, fiquei obcecado em transformá-los em super-heróis (gastei muita tinta com essa porcaria), mas as histórias de humor da revista Biss e Halk sempre foram a tônica e o carro-chefe do “universo Bilak”.

“Independence Bilak”

 

Houve uma época em que eu fazia seis revistas (de 20 páginas cada!) mensais. Você deve imaginar quanto tempo eu gastava da minha (não muito empolgante) vida nesse trampo. Hoje, tudo parece um pouco nebuloso, mas eu tenho a impressão de que passava 90% do meu tempo (literalmente) pensando em como fazer ou fazendo esses gibis.

Lembro de desenhá-los em viagens de carro, no chão, na casa de amigos. Lembro de como era estimulante grampeá-los antes de começar o trabalho, de como era cobrir de nanquim (somente) as capas, de como era excitante terminá-las, relacioná-las, citar umas nas outras, expandir o universo.

Essas revistas tinham editorial, checklist, sessão “memória”, publicidade, serviço de assinatura (eu xerocava, e a editora era a Nuvensinha, assim errado mesmo), edições anuais, especiais, RPG, etc. Houve um certo momento na minha vida em que eu tinha certeza de que aquilo era o que eu queria fazer para o resto da minha vida. Lembro-me de ser uma época de alienante imersão absoluta.

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Nunca fui muito bom desenhista (mesmo amador e mesmo naquela época), e esses gibis tinham linguagem pobre, precária (eu dividia a página arbitrariamente no máximo de quadros possível – geralmente oito – para caber mais histórias). Eram muito baseados nos limitados quadrinhos da Mônica e, mesmo quando passei a ler supers, era raro eu desperdiçar dois ou três quadros para mudar o layout ou fazer uma splash page. Quase tudo eram “cabeça falantes”, sem muita variação de ângulo, e tinha muito texto. Talvez por isso eu tenha mudado, depois, para o sonho (também abortado) de ser escritor.

Quando passei (meio tardiamente) a me interessar por outras coisas (garotas) e também a produzir outro tipo de conteúdo (contos), decidi que os quadrinhos eram uma coisa um tanto quanto (vejam só) idiota e fui fazer faculdade de letras imaginando que aquilo sim me elevaria à honraria de ser um grande escritor. Foi a pá de cal. Na universidade, um quintilhão de leituras teóricas são capazes de matar o escritor, o quadrinista, o artista que for.

Virei crítico para pagar a penitência, talvez pela arrogância, mas tive a humildade de voltar aos quadrinhos alguns anos depois para redescobrir efetivamente sua potência e levá-los (mesmo que como uma bola de metal presa na perna) para o resto da minha vida, e além.

Meu irmão Marcos e eu, brincando de irmãos Bilak, circa 1990

 

PS: Esta coluna é dedicada ao Marcus Vinícius Boaventura, Thiago Garcia, Chico Mozart, Gabriel Murta, Daniel Sato, Bruno Brumatte, minha tia Nilce e especialmente ao meu irmão Marcos Marcondes. Esses eram meus precisos oito leitores (eu disse que dava pra contar nas mãos).

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