ZIP 100: meus 15 quadrinhos favoritos
Coluna de quadrinhos do Metrópoles comemora marca centenária listando as obras preferidas do autor, Ciro Marcondes
atualizado
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Quem leu a ZIP 50 sabe que os quadrinhos me acompanham desde muito pequeno. Meu cotidiano na infância e primeira adolescência foi em grande parte preenchido por horas e horas solitárias de produção de quadrinhos que ninguém leria. Essa paixão, no entanto, foi sequestrada na alta adolescência e idade adulta: digamos que traí meu amor primeiro com o cinema. A obsessão pelos filmes me consumiu por muitos anos (enquanto fazia faculdade de letras, curiosamente). Assistia a três, quatro longas-metragens por dia, quando usufruía desse privilégio chamado tempo livre.
O divórcio com os quadrinhos durou alguns anos, mas, aos poucos, fui vendo que, na antiga cognição infantil havia, na verdade, uma maturidade antecipada. Voltei a ler quadrinhos em meados dos 20, vorazmente. Aquilo me alucinou. Fundei o blog Raio Laser e, anos depois, comecei a ZIP. Nunca gostei da associação arbitrária e mal-intencionada entre quadrinhos e infância, mas aqui eu preciso recorrer ao clichê. Há algo de infantil nos quadrinhos, no sentido de abrir portas ao delírio. De repente, entreguei-me a esse primado do faz de conta, da deformação errática, da demência sábia da criança.
O que eu vejo nos quadrinhos que se difere das outras formas de expressão? É uma pergunta dura, cheia de armadilhas, mas seu aspecto capcioso está, na verdade, correto: o quadrinho é a forma de arte que nos permite abolir uma linha distintiva entre as subjetividades infantil, adolescente e adulta. Permite uma formação cíclica, nietzschiana, de uma ética humana sem fronteiras disciplinares, institucionais. Charlie Brown, Mônica, Calvin, Mafalda: são crianças que rompem esses muros que nos formatam como “cidadãos”. E Crumb, Alan Moore, Al Capp, etc. são crianças grandes que imaginam e escrevem para nos alertar disso. E assim falou Zaratustra.
Nesta centésima coluna ZIP, com o coração enfeitiçado por esse sentimento docemente pueril, resolvi escrever umas linhas sobre meus 15 quadrinhos favoritos. Nas séries, coloquei a data de sua primeira publicação. Agora é rumo às próximas 100!
Asterix – René Goscinny e Albert Uderzo (França, 1959). Para mim, a fábula da resistência gaulesa diante do Império Romano é uma das mais pregnantes metáforas universais sobre resiliência e atitude individual perante a vida. Fora isso: humor com perfeita precisão, personagens lendários de tão carismáticos e um imaginário de história e fantasia capaz de nos colocar em profunda introvisão diante do mundo. Resolvi não escolher um álbum específico porque qualquer um com a dupla original está de bom tamanho.
Buda – Osamu Tezuka (Japão, 1972). Contar a história do Buda em 14 volumes, eis o desafio que o mestre Tezuka levou 11 anos para concluir. De certa maneira, Buda é uma antibiografia: nada é protocolar ou laudatório. Aqui, os aspectos fantasiosos e oníricos tão comuns aos quadrinhos não são suprimidos, mas estimulados. Temos a impressão de que a trajetória de um ícone religioso é, na verdade, a maior e mais transformadora aventura de todos os tempos.
Dick Tracy – Chester Gould (EUA, 1931). Esta é uma série de quadrinhos dos anos 1930, difícil de ser lida hoje em dia. Mas a capacidade que o brutão Gould tinha em extrair, de tiras de jornal, potência expressiva em temas adultos e vigorosos, sempre me encantou. Dick Tracy é um dos melhores produtos (considerando qualquer mídia) que processe em brutalidade e violência o gangsterismo e o futuro estilo noir. Detetives durões, vilões picarescos, justiça nas ruas: não é preciso ler nenhum gibi de super-herói depois de ler isso.
Dykes to Watch Out For – Alison Bechdel (EUA, 1983). Entre as tiras modernas, pouca coisa chega perto desta no que diz respeito à urgência dos temas debatidos, com naturalidade, carisma e questionamentos agudos. Bechdel ficou famosa com o também excelente Fun Home, mas, nesta sitcom gay dos anos 1980, ela não apenas antecipou forma e conteúdo de todo um imaginário mas também ajudou a construí-lo.
Love and Rockets – Jaime e Gilbert Hernandez (EUA, 1982). Assim como Dykes, Love and Rockets – alternando entre a vida urbana de gangues de chicanos na Califórnia e o cotidiano de um país fictício na América Central – abordou, em longuíssimo termo, questões como ascensões geracionais e imaginários do mundo e da vida dos jovens, numa radicalidade estilística e coolness que, penso eu, jamais foram superadas.
Diomedes – A Trilogia do Acidente – Lourenço Mutarelli (Brasil, 1999). As três histórias grotescas da saga de Diomedes compõem, para mim, o melhor que o quadrinho brasileiro produziu. Em nenhum outro conterrâneo eu reconheci tanta distinção estilística, além da consciência sobre suas referências e organicidade na hora de tratar do mais absurdo tema existencialista. Tudo isso por meio das missões de um detetive tosco e ao mesmo tempo lúgubre.
A Garagem Hermética – Moebius (França, 1976). É claro que sou fã da arte revolucionária de Moebius, mas o que me encanta nesta obra é seu processo livre, desimpedido e quase “automático” de composição narrativa. O ilustrador francês criava a história à medida que desenhava. O resultado é um sonho que nos situa no vale profundo entre nosso inconsciente e a física quântica. André Breton jamais chegaria a esse resultado.
Corto Maltese – A Balada do Mar Salgado (Itália, 1967). É sempre controverso escolher o melhor de Hugo Pratt, mas serei básico e prático: aquele que viria a ser o primeiro romance gráfico do dândi marinheiro do início do século 20 continua sendo sua mais definitiva aula de narrativa e composição da atmosfera de uma época, com drama excitante e pausas contemplativas. Suas ilustrações esplendorosas me lembram as de artistas de forte impetuosidade, como Manet e Gauguin. De chorar.
Peanuts – Charles Schulz (EUA, 1950). Obviamente, Peanuts transcende os quadrinhos. Sua simplicidade artística chega a ser uma afronta: como algo tão econômico (em termos de linguagem) pode dizer e expressar tanto o sentimento de uma geração e uma época? Schulz era, ao mesmo tempo, neurótico e estoico, e seus personagens (como dizem algumas teorias literárias) eram subdivisões de seu self. Nesse sentido, é claro que Charlie Brown e Snoopy representam arquétipos opostos dentro de uma mesma pessoa.
The Spirit – Will Eisner (EUA, 1940). É polêmico o que vou dizer, mas lá vai: tudo o que Eisner fez (de quadrinhos) em toda a sua vida já estava em Spirit. Nesta humilde série policial/noir/heroica dos anos 1940, tudo eclodiu. A famosa comparação com Cidadão Kane faz todo sentido (sou um fã histérico desse filme). Spirit subverteu processos narrativos, pontos de vista, uso de diferentes matérias de expressão, tudo em prol de histórias carregadas de significado humano, usando a linguagem para modular a atenção e o foco sobre os personagens. De quebra, eram aventuras contagiantes e engenhosas, que influenciariam toda a mídia dos quadrinhos.
Two-Fisted Tales – Harvey Kurtzman (EUA, 1950). Sempre gostei muito do gênero de guerra e costumo dizer que as histórias de Kurtzman sobre o conflito na Coreia, no início da Guerra Fria, estão entre o melhor que já foi produzido em qualquer mídia. São contos brutais, de moral tortuosa e cínica narratividade, revelando o aspecto desalmado do conflito numa circularidade paranoica e febril. Os quadrinhos da EC Comics ficaram famosos por Tales From the Crypt, mas o verdadeiro horror estava aqui.
Blake e Mortimer – O Enigma da Atlântida – Edgar P. Jacobs (Bélgica, 1957). Este trabalho fundador do estilo “linha clara” me atrai por vários motivos: sua racionalidade exacerbada, figurada na dupla espião/cientista; sua linda verborragia, com balões e letreiros inflados de texto literário; e sua limpidez na ilustração, um dos estilemas mais sui generis dos quadrinhos. De resto, aventura e intriga de alto nível, na minha opinião, ligeiramente superiores ao quadrinho-irmão Tintim. Este álbum sobre a Atlântida é um dos mais loucos e inovadores.
Mort Cinder – Hector Oesterheld e Alberto Breccia (Argentina, 1962). A escola argentina de quadrinhos é uma das mais carregadas de identidade própria, e seu período de ouro é no mínimo tão rebuscado quanto a tradição francesa de ficção científica. Tudo o que o roteirista Oesterheld escreveu tem densidade humana e aspectos existenciais. Tudo o que Breccia ilustrou trazia gravidade nos sulcos profundos de seu nanquim. Mort Cinder reúne esses dois monstros em histórias filosóficas sobre imortalidade e viagem no tempo. Não teria como não ser clássico.
Krazy Kat – George Herriman (EUA, 1913). Ninguém merece morrer sem ler Krazy Kat. George Herriman, em simples tiras de jornal, captou o espírito das vanguardas heroicas para os quadrinhos e, ao mesmo tempo, a vida rural norte-americana do início do século 20. Seu mote era um triângulo amoroso entre um gato abobalhado, um rato perverso e um cachorro autoritário. As milhões de variações desse tropo foram aproveitadas em quadrinhos que criaram a mais fabulosa experimentação da história dessa mídia. É algo que pega no pescoço e te entorta pela linguagem. Alguém lembrou de James Joyce?
Lobo Solitário – Kazuo Koike e Goseki Kojima (Japão, 1970). No dia 17 de abril, faleceu Kazuo Koike, o escritor desta que é possivelmente a mais emblemática saga da história dos quadrinhos. Sua falta será muito sentida. Ele ainda estava na ativa. Lobo Solitário, a história de um samurai renegado (ronin) que realiza uma jornada de vingança levando a tiracolo seu filho bebê, é muito mais do que uma simples aventura sangrenta. O estilo econômico, veloz e letal dos desenhos de Kojima combinam com a escrita estoica e zen de Koike, produzindo uma obra que tange o sagrado e o transcendental.
Bônus:
Groo, o Errante – Sergio Aragonés e Mark Evanier (EUA, 1982). É trapaça, eu sei, mas, apesar de Groo ter baixa relevância para a história dos quadrinhos, tem enorme significado em minha formação como leitor. O acesso a isso na adolescência derreteu minha mente. O bárbaro tapado e sua entourage de imbecis certamente é uma das coisas mais engraçadas que já li, parodiando os esteroides de Conan e até realizando críticas políticas/sociais. O texto satírico de Evanier, mestre na arte de representar a completa idiota, misturado aos desenhos aloprados de Aragonés, fizeram disso um clássico pessoal, e um favorito. Também indico a espécie de spin-off Usagi Yojimbo, do letrista de Groo, Stan Sakai, inspirado no Lobo Solitário, mas com bichos fofos!