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Última temporada de Game of Thrones marca fim de um modelo de TV

A sequência estreia em 14 de abril, na HBO

atualizado

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maisie williams game of thrones1
1 de 1 maisie williams game of thrones1 - Foto: HBO/Divulgação

Lá para os idos de 1993 ou 1994, eu descobri a série Arquivo X (de Chris Carter – na época passava na Record). Tratava-se mesmo do clássico piloto: aquele da sequência final com os OVNIs triangulares sobrevoando o idiossincrático agente Fox Mulder numa base militar americana. Na época, atraído por ufologia e mistérios semelhantes, passei a acompanhar os episódios, semana a semana. Sem saber, estava testemunhando uma transformação na maneira como as pessoas assistiam à TV.

Para a minha experiência pessoal, aquele hábito inaugurava dois procedimentos: a ritualização semanal de acompanhar um seriado e a ideia de que hipóteses narrativas em séries poderiam ocorrer em longuíssimo prazo, algo que Arquivo X anunciava a cada primeiro e último episódios das temporadas. Nos outros, era uma série tipicamente procedural, ou seja, cada episódio é fechado em suas próprias contingências, geralmente com Mulder e Scully resolvendo um caso misterioso (que raramente voltava a ser mencionado) em 45 minutos de tempo narrativo.

Aos poucos, Arquivo X foi ficando cada vez menos procedural. O público perdeu o interesse no “monstro da semana” para procurar entender a complexa (e quase incompreensível) conspiração alienígena global que se manifestava em seu aspecto “serializado” e que tomou conta das (péssimas) últimas temporadas. Isso não impediu que esse tipo de engajamento fosse se instalando como o de maior prestígio na virada dos anos 1990 para os 2000. O caso de Lost foi documentado no livro Cultura de Convergência, no qual o papa da transmediação Henry Jenkins faz minuciosa análise das culturas on-line que surgiram para tentar decifrar os enigmas do saudoso seriado.

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A questão é: séries “serializadas” foram tomando conta de uma renovação na TV, com arcos longos, muitas vezes pensados em várias temporadas, que criavam uma resposta hipnotizante e congregadora. Pessoas se reuniam nos domingos para ver Lost. O reinado do procedural (que vinha desde os produtos cinematográficos continuados nos anos 1940 a clássicos dos anos 1960, como Perdidos no Espaço ou Star Trek) estava profundamente ameaçado.

Tratava-se do nascimento da complex TV, termo cunhado pelo teórico Jason Mittel para compreender essas longuíssimas narrativas que subvertiam os modelos estilo “jornada do herói” do cinema clássico, com estruturas desvirtuantes como flashfowards, hipóteses de prazo indeterminado, arcos que duram 15 horas, frustração brutal de expectativas, construção das linhas de ação de uma história durante a produção, etc. Muitos estão chamando isso de “era de ouro”, mas tenho lá minhas dúvidas.

O modelo serializado dominou a TV por alguns anos e dependia do intervalo semanal para fazer germinar a cultura on-line de fãs (um “fandom”) que servia para especular sobre os desdobramentos dos acontecimentos. Porém, na medida em que essas séries começaram a sair completas, primeiro em DVD e depois em plataformas de streaming, um novo hábito de consumi-las surgiu: a ideia de se passar horas e horas “zumbizando” em intermináveis episódios: é o tal do “maratonar” (binge-watch).

Aos poucos, as séries foram sendo lançadas em temporadas completas diretamente em streaming (especialmente com a imperiosa ascensão da Netflix), e aquele fenômeno que vivenciei em primeiro lugar com Arquivo X foi se dissipando até se dissolver no “maratonar”. O modelo atual ainda busca seu formato ideal. Episódios e temporadas são encurtados, e formas mais enxutas estão sendo testadas. Parece-me que o público enjoou um pouco de acompanhar (e perder) horas intermináveis com “mais do mesmo” – The Walking Dead que o diga.

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Ainda hoje séries procedurais, serializadas e “maratonáveis” convivem no campo das transmissões televisivas. O formato broadcast, quando uma TV direciona programa e horário para o espectador, parece estar sendo substituído pela ilusão de liberdade do streaming. A Netflix (seguida por outros serviços semelhantes) quer dar a impressão de que possui tudo o que você precisa em TV. Uma falácia de que você mesmo se programa (enquanto na verdade é programado).

No próximo domingo (14/4), ocorre o começo do fim desta era. Game of Thrones, a última série relevante do ponto de vista “serializável”, tem estreia de sua longamente aguardada temporada final. Dificilmente teremos um fenômeno semelhante. It’s not HBO, it’s streaming.

GoT
A última série “serializada” que terminei no formato semanal foi Breaking Bad. Que agonia quando dividiram a última temporada em duas, separadas em seis meses por uma inacreditável cagada de Hank Schrader! Porém, eu ainda acompanho Game of Thrones e, apesar das derrapadas das últimas temporadas, resisto assistindo, exatamente por esse seriado personificar as transformações de tecnologia, broadcast, engajamento e estruturas narrativas pelas quais essa forma audiovisual passou nas últimas duas décadas. De certa maneira, para quem se interessa pela TV como mídia, entender o fenômeno GoT é uma obrigação.

Lembro-me, também, da primeira temporada, num hoje longínquo 2011: um amigo havia me recomendado a série de livros Uma Canção de Gelo e Fogo – hoje inevitáveis clássicos de George R. R. Martin – como algo nunca antes experimentado em fantasia. Jamais me dei ao trabalho de ler essa literatura, mas (como convém) decidi ver a série, apostando no selo de qualidade HBO. Eu havia gostado da (hoje esquecida) Roma, que, em duas matadoras temporadas, botou definitivamente à prova o formato procedural.

GoT começou como uma extremamente bem-desenhada infiltração de tramas paralelas num mundo de high fantasy esvaziado de qualquer ingenuidade. Aspectos econômicos, políticos e morais – junto a banhos de sangue e sexo – traziam um pesar praticamente inédito ao gênero, com personagens profundamente complexos e reviravoltas que traziam a marca de um realismo verossímil. Martin baseou suas gerações de tramas na própria história da Inglaterra e em textos shakespearianos, criando situações de revolta e estupefação que superavam até mesmo o altamente criativo background de Westeros. Mesmo o aspecto mágico da série parecia recôndito e relegado a um pano de fundo, deixando o cerne da coisa acontecer nas relações humanas.

Divulgação

 

Como se sabe, após umas três temporadas carregadas de eventos que certamente marcaram para sempre pelo menos duas gerações, o estilo literário dos romances mais avançados de Martin começou a ficar extremamente difícil de se adaptar. GoT era uma espécie de work in progress interminável, que abria dezenas de tramas sem jamais encerrá-las. Sim, tal qual a própria realidade. Seria possível dar conta de uma narrativa que procurava reproduzir o procedimento do real?

A quinta e a sexta temporadas, já nas anotações finais do autor, não conseguiram subsumir esses problemas, e as histórias foram pendendo ou para o tédio, ou (pior ainda) para o inverossímil. No entanto, uma narrativa não é uma narrativa sem um fim, e os showrunners David Benioff e D. B. Weiss precisaram engendrar algo, mesmo sem material escrito por Martin.

A sétima temporada, a mais grandiloquente e amalucada, jogou essa credibilidade anterior pelos ares e apostou no legado prévio de GoT: a influência de O Senhor dos Anéis e aspectos mais alegóricos dos símbolos espalhados pela “mitologia” de Westeros. O que era enraizado no realismo acabou soltando as rédeas para a imaginação sem limites da fantasia, com direito a produções de cinema para cada episódio e doses cavalares de CGI.

Portanto, sem possuir muito mais o incentivo da tradição do formato serializado e incapaz de sustentar o próprio peso das tramas e personagens erigidos, Game of Thrones foi “enxugando” sua forma e preparando, para suas hordas de fãs ao redor do mundo, um final que, se não pode (nem de longe) corresponder às ideias e inteligência das primeiras temporadas, procura ao menos entregar um espetáculo mágico empolgante e inspirado, sem jogar no lixo a tradição que procurou subverter. Ao menos, isso é melhor que o grosseiro final de Arquivo X em 2002 (o “reboot” nem comento), e o canto de cisne para um tipo de TV que será substituído por algo cuja natureza ainda é muito incerta.

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