Três novos lançamentos da Darkside que movimentam a cena das HQs
Editora aposta em histórias de máfia japonesa, animação delirante e documentos sobre refugiados. Confira resenhas.
atualizado
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“Eles bem que tentaram nos vender um mundo perfeito. Não é nossa culpa se enxergamos as marcas de sangue embaixo do tapete”. Assim, em meio a sombras perturbadoras, começa o manifesto Aposte no Escuro, no site da editora Darkside, dono de uma dupla proposta muito interessante: em primeiro lugar, apostas nos gêneros do horror, suspense e fantasia, estilos ganhando cada vez mais leitores e adeptos. Em segundo, publicam livros classudos, com ótimo acabamento, de autores incríveis, como Edgar Allan Poe.
Ah, a Darkside também publica quadrinhos de autores brasileiros e estrangeiros. É aí que entra nosso comentário. Seus mais recentes lançamentos incluem uma bem-acabada história de yakuza e samurais modernos; um superimaginativo e gigante romance gráfico quase mudo inspirado na linguagem da animação; e uma HQ documental pesada feito uma bigorna de chumbo sobre refugiados habitando precariamente o Norte da França em busca do sonho de chegar à Inglaterra.
Parece mais do que filmes de zumbi e cópias de O Senhor dos Anéis? Pois foi também esse apelo a uma diversidade de formas e gêneros que me levou a querer escrever breves resenhas destes três volumes. Descubra aí qual é qual:
Samurai Shirô – Danilo Beyruth (Darkside, 2018):
Um romance gráfico de ação que tem uma pegada Dirty Harry, misturada ao imaginário dos filmes estilo “yakuza” de Takeshi Kitano, bem ambientado nas ruas, sangue, suor e contradições da grande capital paulista. Assim é esta bem-vinda nova HQ propriamente autoral de Danilo Beyruth, um dos mais prolíficos quadrinistas brasileiros da atualidade. Explico: há alguns anos ele vem também fazendo sucesso com as “Graphic MSP” (adaptações autorais dos personagens de Mauricio de Sousa) do Astronauta – considero esse o melhor material produzido para a série. Beyruth manja bem dos traquejos de linguagem dos quadrinhos e produz soluções muito interessantes (balizadas na física, e tal) para o viajante das estrelas de Maurição. Diria que tira leite de pedra.
Samurai Shirô está mais na linha de seus outros quadrinhos autorais, como o Necronauta e Bando de Dois (seu melhor trabalho): aventura calcada em desdobramentos de atos cinematográficos e pontos de virada. Três elementos emergem: um “homem sem nome” (estilo Clint) todo ferrado que acorda sem memória e uma espada katana nas mãos; uma estudante de ascendência japonesa morando no bairro da Liberdade; e uma guerra entre clãs rivais da yakuza que vai aportar em terra brasilis.
Beyruth é um ilustrador apenas mediano. Carece-lhe recurso para ilustrar movimentos muito sofisticados (inspirado no mangá), cenários muito detalhados e expressões faciais mais naturalizadas. A empreitada é robusta (quase 200 páginas) e ele dá conta com algum esforço. Porém me agrada o leque bacana de referências e o aspecto desencanado da trama, que me lembra uma aventura fechada (despretensiosa, de banca) dos quadrinhos Bonelli. Sem dúvida fica no saldo positivo.
Imaginário Coletivo – Wesley Rodrigues (Darkside, 2018):
Morando em Brasília, logicamente acompanho anualmente o tradicionalíssimo Festival de Cinema, às vezes com participações na curadoria ou no júri. Nestes anos, todos filmes vêm e vão, da mais absoluta mediocridade até realizações tão significativas que se cristalizam na memória para sempre.
Em 2013, um desses foi a animação Faroeste: um Autêntico Western, dirigido pelo goiano Wesley Rodrigues. Uma derretida e frenética mise-en-scène entre personagens histriônicos inspirados nos Looney Tunes e no imaginário dos filmes americanos. Qual foi a minha surpresa quando vi que esse Imaginário Coletivo era o primeiro trabalho autoral em quadrinhos do mesmo experiente (na animação) Wesley nessa mídia?
Na bacia das almas, um espírito que era destinado a ser um pássaro acaba encarnando em uma vaca. A partir deste mote e de uma fábula moral sobre um vilarejo controlado por um tirano, Wesley vai descosturando a mais fluida narratividade cheia de idílios, lirismo e, por vezes, pesadelos. O autor limpa as arestas dos quadros, representa-os em todos os tamanhos e formas possíveis, e capricha no caráter deformativo das paisagens humanas e animais.
Todo esforço possível é colocado em prol do livre passear entre as páginas. Por vezes, temos a impressão de que o autor não quer largar o osso e entender que, por aparentados que sejam, quadrinhos e animação são registros distintos da realidade. Faltou uma qualidade intrínseca à “narrativa de conteúdo aleatório justaposto em sequência deliberada” em Imaginário Coletivo. É uma pena também a lição metafórica de liberdade e as assinalações em direção a uma crítica social me pareçam um tanto lugar comum. São mazelas no limite entre as duas mídias.
Refugiados: A Última Fronteira – Kate Evans (Darkside, 2018):
Calais, no norte da França, é famosa pelas suas rendas, mas um cenário recente tem mudado o perfil etnográfico não apenas desta cidade, mas em tudo que conhecemos sobre a Europa Ocidental e seu imaginário de desenvolvimento, cultura e civilização. Ali se estabeleceu uma pequena “colônia” (se assim podemos dizer) de refugiados de várias partes do mundo (Síria, Iraque, diversos países africanos), que sonham, de alguma forma, em entrar na Inglaterra, mesmo sem visto, passaporte ou perspectiva de integração social.
Querem apenas escapar do horror absoluto, arriscando seriamente suas vidas, em um salto de desespero no escuro. Este fenômeno intensificou uma polarização na França entre uma extrema direta xenófoba e voluntários com ideias libertárias (arriscando, também, suas liberdades e suas vidas) dispostos a ajudar essa multidão de refugiados.
Uma destas pessoas (do segundo tipo) é a quadrinista canadense/britânica Kate Evans, que passou tempo o bastante auxiliando essa população desassistida para erigir um volumoso romance gráfico de estilo documental, inspirado no pioneiro Joe Sacco, para retratar/denunciar a incômoda situação.
Ali são narrados seus detalhamentos, que incluem métodos para se construir abrigos, a utilidade de óculos de natação num ataque da polícia, efeitos da masculinidade tóxica em ambientes de guerra, etc. E histórias. Muitas histórias comoventes e aterradoras, de pessoas que estão à margem da humanidade, mas que não se esqueceram do que é ser humano.
Evans não é exatamente uma mestra da ilustração. Seu traço é um tanto amador e quase infantil. Também não possui a argúcia jornalística de Sacco, ou a ironia de Guy Delisle. Porém, supera essas deficiências com recursos criativos, como letreiros em diversas modalidades de tarjas e quadros arranjados como se fossem rendas. No final das contas, o humanismo atroz dos relatos é mais impactante do que o estado da arte do quadrinho em si.