The End Of The F*** World: quadrinho é mais verdadeiro que a série
O sucesso da Netflix reflete tempos vazios e delinquência juvenil
atualizado
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Um jovem casal sai à deriva pela estrada cometendo crimes inconsequentes em busca de algum sentido para a vida. Você já deve visto essa ideia em alguns filmes por aí. O mais famoso, é claro, é Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas, clássico da “Hollywood Renaissence” e dirigido por Arthur Penn. Warren Beatty e Faye Dunaway interpretam os inveterados bandidos durante a Grande Depressão americana.
O filme foi realmente revolucionário em seu estilo seco, com cortes inventivos e uso gráfico da violência. Além disso, a abordagem niilista sobre a psicologia dos personagens inaugurou toda uma era de anti-heróis no cinema americano. A bola da vez, dentro desse pequeno mundo de psicopatas, é a série The End Of The F*** World, produzida pelo canal britânico Channel 4 e distribuída pela Netflix.
TEOTFW (como é conhecida) é dirigida pelo showrunner Jonathan Entwistle, e investe numa pegada autoral e indie. Sendo apenas oito episódios de cerca de 20 minutos, temos a sensação de presenciar aqui uma “youtubização” dos seriados: mais curtos, explícitos e rasteiros. Não que isso não seja uma boa fórmula para um produto pop, mas revela muito sobre algo que se propõe radical e tem resultado inócuo.
A série mostra o casal em diversas situações que funcionam como “provações” para a busca de sua angústia juvenil. A cada momento, uma voz over narra ao espectador o ponto de vista dos protagonistas: impropérios, vaguidão, estranhezas. A proposta anseia por ser um Bonnie e Clyde millennial, com ecos de Godard e Wim Wenders, mas não chega aos cuidados de um Wes Anderson.
Sem qualquer vínculo que impacte as séries ou problemas atuais, TEOTFW é um retrato da delinquência juvenil em sua mais tola e inverossímil encarnação. Nem por um segundo pode-se acreditar no ímpeto ou na legitimidade desdes personagens.
Bonnie e Clyde se apropriava de uma história americana dos anos 1930 para torná-la um conto de fadas sangrento sobre as transformações sociais americanas nos anos 1960. TEOTFW, de certa forma, “rouba” o propósito do clássico de Arthur Penn para fornecer ao espectador pós-MTV um espetáculo nonsense e violento.
Nos quadrinhos é diferente
O que poucos sabem é que TEOTFW é adaptada de um quadrinho relativamente obscuro de mesmo nome. O autor, o americano Charles Forsman, o publicou em formato de romance gráfico pela prestigiada Fantagraphics, em 2013.
Porém, o seu ambiente original, totalmente indie, são minicomics, pequenas publicações semelhantes a fanzines. Fazer esse tipo de quadrinho requer economia e precisão nas escolhas. Além disso, o fato de o original ser americano (e não conter “humor britânico”) explica bastante o aspecto aleatório e desiludido dessa história.
TEOTFW, o quadrinho, em nada lembra a série. Em primeiro lugar, é despretensioso e muito mais lacônico. O estilo é brutalmente simples – à semelhança de outros mestres do minimalismo indie, como John Porcellino e Simon Hanselmann –, mas encantador, e as ações bem mais resumidas, quase como cenas esparsas de arquétipos pós-modernos.
Na série, personagens novos, para cumprir tabela, são acrescentados, e um desejo de realismo acaba impregnando-se em algo que originalmente seriam apenas flashes de uma demência juvenil absurda e fictícia. No quadrinho, o nonsense faz parte do projeto despojado do autor.
Isso diz muito sobre como cada meio de comunicação puxa para seu cânone e para seu leque de referências histórias que são vistas por outro ângulo em outra mídia. A série transforma uma HQ em oito episódios transbordados pelo anseio de um diálogo com a história do cinema.
Já o quadrinho, na inocência punk do mundo zinesco dos minicomics, traduz melhor uma experiência de juventude contemporânea fragmentária, em fluxo, indefinida. No frigir dos ovos, sobrevive, no mundo de TEOTFW, aquela velha máxima: “Menos é mais”.