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Stop-motion Ilha dos Cachorros discute direito dos animais

Filme do cineasta Wes Anderson fala do aspecto totalitário da humanidade

atualizado

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Quando assisti a Ilha dos Cachorros, novo filme em animação stop-motion do irrepreensível diretor americano Wes Anderson, me lembrei da minha fábula de La Fontaine favorita: ela trata da história de um lobo que encontra um cachorro domesticado.

O lobo fica impressionado com a boa vida que leva o cão, por ele estar sempre bem nutrido e asseado. O cachorro explica: é fácil viver assim, no bem bom. Basta obedecer aos humanos, latir para os bandidos e guardar a casa.

O lobo, que estava impressionado, ao ver a vida de servidão levada pelo cachorro, percebe a cilada e diz, ao seu interlocutor, para depois continuar correndo livre: “Pois faça bom proveito de sua boa vida”! A fábula, logicamente, trata da liberdade humana, porém, não faz mal pensar um pouco na própria condição animal da questão.

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Fábula O Lobo e o Cão, ilustrada por Gustave Doré

Sempre achei os cachorros animais domésticos servis demais. Prefiro bichos que, de certa maneira, preservam o ímpeto de liberdade que o lobo na fábula anseia (como os gatos). Na ficção, cães são sempre tratados como honrosos e leais, dispostos a se sacrificarem por seus “amigos” humanos. O episódio dois da nova versão da série Cosmos, com Neil deGrasse Tyson, explica perfeitamente o modo fascinante como os lobos evoluíram para se transformarem na sua mais dócil antítese.

Ilha dos Cachorros fala de uma traição a esta lealdade. Num Japão completamente fictício, um ditador (amante dos gatos, que por sua vez detêm o arquétipo de egoístas e macabros) resolve banir todos os cachorros para uma ilha cheia de lixo porque eles supostamente estavam espalhando uma nova e desconhecida doença. Lá, um grupo de cães diversos, incluindo um vira-latas pária e raivoso interpretado por Bryan Cranston, resolve ajudar um menino viajante que cai na ilha para encontrar seu antigo cãozinho de estimação.

Anderson dá a esses cachorros personalidades carismáticas e ao mesmo tempo lacônicas, como é de praxe em seu cinema. Um elenco de estrelas cultuadas (Bill Murray, Harvey Keitel, Scarlett Johansson, entre outros) dubla estes personagens com realismo pouco visto em animações anteriores. Olhares trocados com sutileza, silêncios que irrompem na mise-en-scène e dinâmicas especiais entre eles são apenas uma primeira pista do rigoroso primor com que o diretor compõe cada detalhe do filme.

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Um outro signo deste primor é a reverência com que é tratada a cultura japonesa. Sim, o filme é uma homenagem sólida e divertida à influência desta potente cultura no imaginário ocidental. Francamente, acusá-lo de “apropriação cultural” seria como querermos julgar os membros do Pato Fu por aquele hitzinho dos anos 90, Made In Japan.

Anderson aborda com volúpia o aspecto visual da história cultural do Japão. As citações não são frívolas e se integram ao grande dispositivo audiovisual, cheio de reentrâncias interessantes, que ele coloca no filme: das gravuras novecentistas ukyio-e (sobretudo Hokusai), passando pelo teatro kabuki e o cinema jidaigeki, além de, obviamente, citar a riquíssima tradição japonesa em animação (de Osamu Tezuka a Taiyo Matsumoto).

A mistura da leve arte clássica japonesa com o aspecto claudicante do stop motion cria um verniz e uma plasticidade capazes de gerar orgasmos nos fãs de animação. Esta técnica, tão antiga, trabalhosa e fascinante, tem também uma história rica, que nasce com o cinema. Por exemplo, no pioneirismo dos filmes de terror de Segundo de Chomón, o “Méliès espanhol”, ou nas lendárias produções de Ray Harryhausen, tão minuciosas que maravilham até hoje.

Meu favorito é o delirante cineasta tcheco Jan Svankmajer, capaz de extrair, do stop motion, imagens aterradoras, que resistem à indiferença. Anderson (que já havia trabalhado esta técnica no mais fraco O Fantástico Sr. Raposo) vem engrossar estas fileiras, elevando mais uma vez, diante dos olhos críticos de cinéfilos “de verdade”, a animação ao estado máximo da arte.

Além de tudo, Ilha dos Cachorros passa também por um autêntico escrutínio cinematográfico: Anderson traduz cada recurso fílmico num cacoete à sua maneira. Do uso do campo e do contracampo, aos movimentos de câmera, à profundidade da cena, tudo parece falar uma língua que conjugue a liturgia deste cineasta. Ele é ritualístico, certamente obsessivo e cerimonial, num alinhamento pouco visto mesmo em seus filmes anteriores.

Finalmente, voltamos aos cachorros. O filme, como fábula que é, tem uma moral, que remete ao aspecto totalitário da natureza humana para com seus pares. O direto animal e campos de concentração podem ser evocados, ainda que com certa imprecisão. O roteiro, no final das contas, se revela arquetípico demais, mas isso não impede que pensemos a condição canina em sua ambiguidade máxima: são nossos melhores amigos, porém, rendidos à servidão eterna. Cabe perguntar se, em algum momento, como na fábula de La Fontaine, terão condição de largar a coleira.

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