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“Star Trek: Discovery” tem dificuldade em se adaptar à TV moderna

Nova série da franquia vive o desafio de agradar aos fãs e às novas audiências

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CONTÉM SPOILERS DE “STAR TREK: DISCOVERY”
“Ir audaciosamente onde nenhum homem jamais esteve”. É esse o caso espinhoso desta nova série da CBS (disponível na Netflix brasileira) “Star Trek: Discovery”, divulgada com aquele apetite de quem encara o desafio de dar continuidade a uma franquia com mais de 700 episódios. A outra peleja: enfrenta um grupo sectário de fãs dispostos a fazer varredura minuciosa do novo produto a fim de encontrar impurezas e profanações.

A equipe de produção original era uma espécie de “dream team” para trekkers, e incluía, como showrunners e produtores, Brian Fuller (de “Hannibal” e “American Gods”), um geek de carteirinha, e Alex Kurtzman (coroteirista dos filmes de J.J. Abrahms). Para escrever a série, ainda há a participação de Nicholas Meyer (roteirista do emblemático filme “A Ira de Khan”) e, como produtor-executivo, Ron Roddenberry, filho de Gene Roddenberry – mítico criador da série original.

REPRODUÇÃO/CBS
A primeira ideia de Fuller era realizar uma série do tipo “antologia”, com episódios desconectados entre si, cada um deles em uma época diferente do universo trekker. Por mais que isso tivesse o potencial de redimir o longo legado da série, a CBS vetou e o showrunner caiu fora. O problemático resultado foi algo muito mais próximo a uma “atualização de Star Trek” para os parâmetros contemporâneos de televisão em streaming. “Discovery” tornou-se, afinal, uma única narrativa estilo “prequel” que se passa 10 anos antes da série original.

E o que vemos no novo programa são reviravoltas violentas nas tramas, profunda ambiguidade no perfil dos personagens e uma descaracterização (para não dizer “desconstrução”) muito visível dos princípios clássicos da mitologia. Chega de idealismo e personagens virtuosos. “Star Trek”, finalmente, flerta com o lado negro da força (ops… tô só zoando!).

“Discovery” tem como protagonista a primeira oficial Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), uma humana criada dentro da cultura vulcana por ninguém menos que Sarek, o pai de Spock. Ela tem grande dificuldade em conciliar seus propósitos lógicos e sua impulsividade humana. No meio de tudo isso, inicia-se a primeira guerra da Federação contra os Klingons e a série começa a desenhar seus vários fios narrativos.

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Adaptação à TV moderna
A Netflix soltou seis episódios até o momento, e o panorama que se forma é o de uma busca por um equilíbrio (ainda que tênue) entre o respeito à tradição humanista/iluminista do original e a modernização da televisão, mais afeita a impurezas conceituais e divergências ideológicas – privilegiando cada foco do discurso como um lugar de fala específico. Nesse sentido, “Discovery” é a série com mais diversidade étnica e cultural entre seus protagonistas, e isso reflete as questões problematizadas na minúcia de seus personagens.

É claro que “Star Trek” foi pioneiro nesse tipo de discurso e, agora, trava novas batalhas nesta frente em 2017. Assim, os Klingons trazem à tona a emergência de discursos nacionalistas pelo mundo e, paradoxalmente, o radicalismo militar de grupos como o Estado Islâmico.

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Já a animosidade entre a tripulação da USS Discovery, de certa maneira, reflete a dificuldade de diálogo entre as democracias contemporâneas. Cada personagem parece imerso em uma sombra de dúvida, colocando “Star Trek” no rol das séries “modernas” que trabalham arcos complexos (às vezes esdrúxulos) para entoar algo “adulto”.

As trevas estão presentes por toda parte, seja no desastre diplomático/militar que leva à guerra, seja no incidente ecológico que se torna a última opção para viabilizar tecnologias capazes de vencer a batalha. Tudo isso está demarcado no visual escuro e triste (muito azul) que não dá chance ao aspecto multicolorido de outras versões da saga. Os protagonistas, porém, personificam com exatidão essas questões.

Personagens impensáveis
Além da indomável Michael Burnham, heroína que provoca a ira dos espectadores com decisões extremamente questionáveis e assume várias vezes sua natureza sabotadora (mesmo com um improvável componente vulcano), temos o capitão da USS Discovery Gabriel Lorca (Jason Isaacs). Esse talvez seja um dos mais impensáveis personagens de todas as séries “Star Trek”.

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Havia, no imaginário de todo trekker, a ideia de que o capitão de uma nave da Federação cumpre certos princípios éticos e propósitos virtuosos. Lorca, no entanto, personifica um exímio estrategista militar indiferente e brutal, disposto a testar os limites morais para vencer a guerra. Isso faz dele um vilão? É essa a pergunta mais capciosa do seriado.

Por fim, há a também marginalizada figura de Voq (Javid Iqbal), o Klingon albino que assume deferência total ao seu messias T’Kuvma e ao ambíguo discurso idealista/totalitário que unifica os alienígenas em uma enorme aliança contra a Federação.

O visual dos Klingons aqui é o mais radical já exibido em uma série ou filme “Star Trek”. A aparência agressiva e animalesca não ocorre por mero acaso: faz parte da tentativa de erguer um discurso sobre etnicidade, cultura e guerra.

O fato de Voq, uma criatura pálida e horrenda, ser visto como um pária, lhe dá um ar de “Homem Elefante” e o faz angariar forças para protagonizar algumas das mais difíceis decisões da série. Estranha inversão de valores.

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“Star Trek” parece estar vivendo uma espécie de momento “adapte-se ou morra”, e isso desagradou a muitos fãs, insatisfeitos com inconsistências cronológicas e também dos fundamentos ideológicos da franquia. Não basta colocar um bando de gente falando em língua Klingon para naturalizar a “estirpe” da série.

Para o fã menos conservador, porém, isso pode não passar de detalhes. Mas, nunca foi tão difícil para os trekkers manterem uma “vida longa e próspera”.

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