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Sátira da Rússia pós-soviética é o novo êxito das HQs brasilienses

História em quadrinhos brasiliense mistura comédia com teatro do absurdo por meio de uma turma de arruaceiros

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Um bom quadrinho underground reúne generosas doses de contracultura, DIY (“faça você mesmo”), contravenção e um discurso desafiador. É preciso que de vez em quando alguém chute as fuças de uma sociedade moralista e (cada vez mais) hipócrita pra sacolejar o meio às vezes careta demais das HQs. E é um pouco isso que “Anexia é um Paraíso” traz ao quadrinho brasiliense. Uma bomba de iconoclastia. Esta grata novidade é o primeiro volume da série “Vania e a Turma de Anexia”, lançado agora em novembro na Feira Des.gráfica (em São Paulo) pela Ugra Press.


Os autores são o especialmente talentoso Pedro D’Apremont (do sensacional zine “Lo-Fi”) e o indomável Gabriel Góes (já entrevistado pela ZIP), que unem forças para fazer acontecer o mundo quase pós-apocalíptico da fictícia nação de Anexia, uma decadentíssima república pós-soviética. Ali você vai conhecer a “turma”: um bando de arruaceiros trash querendo tocar o terror e se divertir com milhares de litros de vodca e excessos desmesurados de drogas.

Anexia parece uma terra sem lei presa nos anos 80, onde a civilização certamente perdeu seu rumo. O tom é de teatro do absurdo e screwball, mas as referências são múltiplas: de Robert Crumb à turma do Chaves. Do indie comic contemporâneo aos álbuns franceses – de onde tiram o formato da narrativa e a “linha clara” do traço (D’Apremont chegou a estudar em Angoulême, meca dos quadrinhos na França).

“Anexia é um Paraíso” dá dois passos pra frente na carreira de ambos os autores (Góes também acaba de lançar um imperdível trabalho solo – “Soco! Vol. 1″). É um gibi pequeno e um tanto modesto, claro, mas carregado de detalhes e easter eggs, num cuidadoso trabalho de caracterização e ilustração. Aos poucos, vamos conhecendo mais detalhes da falida república e da “turminha”, fazendo o gostinho de “quero mais” ficar cada vez mais presente.


Para quem quer acompanhar o trabalho conjunto dos autores na internet, acesse o site Novo Amanhecer. Os quadrinhos de “Vania e a turma de Anexia” foram primeiro publicados pela “Vice” norte-americana entre 2016 e 2017. Pra finalizar, troquei algumas palavras com D’Apremont sobre o lançamento de “Anexia é um Paraíso”:

FOTO_ALAIN_FRANÇOISZIP: “Vania e a Turma de Alexia” é uma paródia de certa situação catastrófica dos Estados pós-soviéticos. Por que escolher um tema tão aleatório?

D’Apremont: A ideia do Vania surgiu de algumas noites em que eu, Góes e a Cynthia B ficávamos assistindo inúmeros vídeos russos na internet. De brigas de bêbado e “festas” toscas em praça pública a operadores de máquinas pesadas dando biscoitos pra um urso na beira da estrada. Depois de assistir tudo isso fica difícil não imaginar uma Rússia pós-soviética como um desenho animado alucinado à la John K.

O humor do Vania vem de uma mistura de brutalidade com o exótico e estranho, e isso os antigos países do bloco soviético parecem prover de sobra. Por exemplo: a HQ em que eles vão para um show e se envolvem numa briga de proporções bíblicas foi inspirada nas músicas do Butyrka, que é uma banda de “blatnaya pesnya”, uma espécie de brega eletrônico “bandido” russo, em que as letras falam basicamente sobre o submundo do crime e a vida na cadeia, geralmente sob um olhar meio romântico.


Você trabalhou com Gabriel Góes a quatro mãos no texto e desenhos de “Vania”. Às vezes percebemos seu traço mais “urbano” e às vezes o exagero caricatural do Góes. Como foi equilibrar este trabalho?

O processo de desenho do Vania é dividido em três etapas: esboço a lápis; finalização no nanquim; e colorização. Cada um fica encarregado de fazer uma ou mais etapas desse processo, e nós invertemos ele a cada historia. Então se na história A eu fiz o lápis e a colorização e o Góes fez o nanquim, na história B eu só faço a finalização a nanquim e o Góes faz o resto. Isso faz com que o resultado final seja a mistura do meu estilo de desenho com o dele, e cria uma esquizofrenia interessante entre uma história e outra. Brincamos muito com a falta de continuidade nas HQs do Vania (dá pra ver isso bem claramente no personagem do Urso, que muda quase a cada quadro), então essa troca de funções a cada historia veio meio que naturalmente.

Bandas de indie rock inaudível, satanistas ridículos, maconheiros folgados. Os seus temas e personagens pertencem a vários microcosmos. Como você pensa estes mundos e o que quer dizer com eles?

Não tem muito mistério. Tirando as HQs do Vania, que são escritas como se fossem desenhos animados, tudo o que eu desenho é baseado nos ambientes em que eu frequento ou nas coisas que me interessam, e acho que é isso o que dá uma certa unidade ao meu trabalho.

Nos quadrinhos do Daví e Bróder, meus personagens mais recorrentes, fico retratando uma vida cotidiana média meio loser de jovens adultos em Brasília. Me baseio muito em coisas que presenciei e ouvi na época da faculdade e certas figuras “perdidas na vida” que eu conheci ao longo dos anos. Não que as HQs sejam construídas em cima de algum episódio preciso, mas sim nessa sensação de ficar flutuando por aí sem muito propósito ou grandes ambições e achar que essa vida de poucas responsabilidades e sair por aí bebendo, fumando e fazendo merda vai durar pra sempre.


Os trampos que faço pra “Vice” são sempre sobre música underground, por falta de um termo melhor. Shows horríveis, bandas com reputações duvidosas e um certo elitismo podreira são partes integrais de vários estilos e subculturas que eu gosto, e tem algo de charmoso e muito engraçado nisso. Uma vez fui num show de Noise em que um cara tocava uns Furbies modificados eletronicamente e usava uma gralha empalhada de fantoche como boneco de ventríloquo enquanto ele berrava a todos pulmões. Foi intenso.

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