Rocketman funciona como uma desculpa para falar de Elton John
O filme está fazendo sucesso nos cinemas mundiais e conta a história do popstar
atualizado
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Como professor, preciso confessar que minha música favorita de Elton John é Teacher I Need You, um não tão bem sucedido hit wannabe de seu ótimo (e um tanto subestimado) disco Don’t Shoot Me I’m Only The Piano Player (de 1973, que contém os sucessos Daniel e Crocodile Rock). O começo da letra, de autoria do sempre espirituoso (voz de uma geração) Bernie Taupin, diz o seguinte: “I was sitting in the classroom / Trying to look intelligent / In case the teacher looked at me”.
A música apela para uma paixão platônica de um aluno por um professora, mas o que me atrai, neste rock and roll com levada boogie puxado pelo piano envenenado de Elton John, é o sentimento humano da amizade que emerge no ato da docência, tratado justamente com todos os cacoetes destas relações na engraçada letra de Taupin. Para mim, é esse jeito espertinho e leve de tratar certos assuntos que faz, dessa dupla, um favorito incontestável na minha prateleira de músicos do coração.
Obviamente, como fã de Elton John, fui assistir a Rocketman, a cinebiografia fantasiosa e surrealista que transforma seu período de maior sucesso (e de mais desenfreado envolvimento com as drogas) num musical glam poderoso e delirante, alternando uma visão sobre seu aspecto espalhafatoso e, ao mesmo tempo, sobre seus demônios internos, tão francamente humanos (para um superstar) que beiram a banalidade: vícios, solidão, rejeição, problemas edipianos.
Este enfoque em sua jornada de superação (e não nas composições das músicas e dos discos) obedece, obviamente, a uma agenda que funciona bem (e, na verdade, não me parece errada) nesse tipo de filme: o humano sobre o artista. Impossível não rolar uma projeção-identificação. Todos os deuses têm a sua hybris.
Carreira brilhante
Voltarei ao filme, mas gostaria antes de situar melhor minha admiração por Elton John, primeiro num âmbito puramente musical, e depois no legado de sua influência. Pois, é claro, aqueles que se balizam nas notas doces de Your Song, ou na breguice chiclete de Sacrifice, não têm noção do volume e qualidade de sua obra. Direto e rasteiro: entre 1970 e 1975, Elton John (sempre escudado pelas letras “franquíssimas” de Taupin) vai lançar uma das sequências mais impressionantes de discos bons (uns oito) da história do rock.
Basta ouvir e conferir. Digo isso para evidenciar que Elton John não é um “Best of” de tia véia, e sim um artista que planejava minuciosamente e conceitualmente seus discos. Sem “filers”, cada música importava como se remetesse a toda sua carreira. A extensão de variedade e qualidade, assim como de sua influência sobre o rock e o pop é comparável, por exemplo, à de David Bowie. Não atirem em mim. Apenas trago verdades.
Em Tumbleweed Connection (1970), o diálogo é com o country e o western, revelando toda sua admiração pela música americana. Madman Across The Water (1971) é mais baladeiro, com lindos arranjos de cordas e estruturas musicais que desafiam as normas da canção. Goodbye Yellow Brick Road (1973) funciona como seu “Sgt. Peppers”, um delírio prog e psicodélico, disco duplo, bom de cabo a rabo. Captain Fantastic And The Brown Dirt Cowboy (1975) é sua narrativa mais autoral e complexa, enquanto Caribou (1974) apela ao soul, ao R&B e ao disco.
Em todo este espectro, Elton John revisita a história do rock cinquentista, moderniza o pop sessentista, apela ao blues, ao gospel, ao jazz e ao erudito. A base de seus hits é o piano, algo que compartilha com outros gênios do quilate de Brian Wilson e John Lennon. Como fenômeno comportamental, não é preciso dizer nada: junto a Bowie e Marc Bolan, coloca o queer no mapa do rock. É uma revolução.
Ao vivo
Tive a oportunidade de vê-lo ao vivo duas vezes. O homem teve o disparate de, em um destes shows, começar com Funeral for a Friend/Love Lies Bleeding, um épico progressivo de quase 12 minutos, com longuíssima (e frita) parte instrumental. Sua habilidade com o piano parece intocada, e banda (com alguns integrantes que o acompanham desde os anos 1970) segura um apocalipse de hits com peso e virtuosismo, deixando a parte sensível da coisa com os trejeitos vocais de Elton. Sua voz, como se sabe, ficou bem mais grave, e aqueles falsetes inesquecíveis sobrevivem apenas nas gravações – é o que acontece com quem consome cocaína por anos a fio (Vejam também os casos de Bob Dylan e Brian Wilson). Porém, há emoção e beleza, e isso me basta.
O filme, como esperado, arranca uma atuação digna de nota da ascendente estrela Taaron Egerton, e levanta cenas musicais criativas, muitas inteligentemente integradas à diegese, e outras nos levando a um céu de drogas e purpurina, compatíveis com a tradição do gênero. É claro que há superficialidade e abundam clichês, especialmente narrativos: um Elton mais velho “olha” para um mais jovem; há uma quantidade meio indigesta de “montagens” resumindo etapas da sua vida; além de cenas previsíveis de “fantasmas” de sua história conversando com ele. Eu diria que funciona como um telefilme de luxo, com uma sequência imperdível de videoclipes de músicas capazes de cativar gerações.
Fazendo uma ponte canhestra com o começo do texto, afirmo que Elton John (e também Taupin) despertou em mim o tipo de brodagem professoral (desenvolvida com vários dos meus alunos), que também acomete artistas e seus fãs. Uma cumplicidade confortável, com uma pitada de sarcasmo, que fica pra vida toda. Teacher, I need you. Like a little child.