Retrospectiva ZIP: os 10 melhores quadrinhos nacionais de 2018
Coluna revisita 10 das melhores HQs nacionais lançadas no ano passado
atualizado
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Uma olhadela na artists’ alley de uma CCXP da vida dá uma noção do tamanho da encrenca que é garimpar na imensa produção de quadrinhos brasileira nos anos 2010. Com a coluna ZIP completando dois anos de existência, fico feliz de contribuir com algumas migalhas de opinião (também na Raio Laser) sobre este excitante movimento (por que não dizer?) contracultural.
O quadrinho brasileiro é resistência, é erudição, é discurso. Porém, não posso deixar de confessar que é muito fácil ser atropelado pelas centenas de lançamentos (nem metade chega a mim) e cometer injustiças. É nesse sentido que a lista a seguir é uma seleção do melhor que consegui ler em 2018 de lançamentos brasileiros, e há muitas lacunas.
Uma delas é a HQ Carolina, baseada no já célebre texto autobiográfico da escritora (que sempre viveu às margens) Carolina de Jesus (1914–1977), adaptado por Sirlene Barbosa e João Pinheiro (editora Veneta), e que acaba de levar, gloriosamente, o importantíssimo prêmio especial do Festival de Quadrinhos de Angoulême.
Infelizmente, esse quadrinho ainda está na fila, mas tive a sorte de ler o livro original ainda na faculdade de letras (na Universidade de Brasília), graças a um programa em literatura contemporânea que valoriza diferentes identidades, diferentes vozes e a inclusão no campo da cultura brasileira. Um texto que ganha mais urgência a cada ano que passa.
Vida longa à memória de Carolina de Jesus, à ZIP e aos artistas listados a seguir, que representam muitos outros.
10 – Ipsilone – Rafael Sica (Monstra, 2018): O quadrinista gaúcho Rafael Sica, um tipo visionário que explora situações paradoxais em quadrinhos mudos, soltou esta curta Ipsilone (produzida em 2009) somente em 2018. É uma bela oportunidade de começar uma lista como esta com um dos mais classudos autores nacionais. Aqui, numa parábola circular – que diz muito ao obscurantismo que recai como um manto sobre a ciência e a política contemporâneas –, Sica exibe uma amostra do seu melhor: uma linguagem lacônica e estupefata associada a uma grave crise moral da sociedade. Simples e incisivo.
9 – O Planta, Um Bípede Entre Plantas – Volume 1 – Gustavo Ravaglio (Independente, 2018): Há anos o ilustrador Gustavo Ravaglio vem trabalhando a saga de uma planta que, por meio de um traje “professor pardalesco”, vive entre animais inteligentes e passa por aventuras existencialistas, saltando entre dimensões. O resultado mais notável dessa empreitada saiu em 2018, com este grosso e chique volume independente, de capa dura e inscrições douradas. Ele compila um primeiro arco de uma história adorável, humanista e cheia de recursos. A imaginação de Ravaglio nos leva ao melhor da Disney, numa pegada infantojuvenil muito bem sacada, tendo ao mesmo tempo erudição suficiente para discutir os limites entre magia e ciência, além de outras coisas. Uma pena que passou um tanto batido nos principais meios de divulgação de HQs. Redenção ao Planta!
8 – Granizo Ou: Uma Piada Pós-Guerra – Felipe Portugal (Ugra, 2018): Já parecem eras desde que Felipe Portugal era só um moleque mangazeiro solto nesta buraqueira do quadrinho nacional, tentando encontrar seu lugar ao sol. Com o passar dos anos, ele foi desenvolvendo um estilo prosaico que se funde com a linguagem das tiras (próximo de Schulz), colocando-se em primeira pessoa e desferindo comentários irônicos/dadaístas na forma de HQ indie. Este Granizo, publicado como um jornalzinho pela Ugra, é um de seus auges. Trata-se de uma paródia de guerra estilo Monty Python/Dr. Fantástico que consegue ser em si absurda e ao mesmo tempo revelar também um mundo absurdo, marcas indeléveis de uma boa narrativa no front. Lembra o grande Mort Walker (falecido em 2018), sinal de que Felipe marcha confiante na direção certa.
7 – Anuí – Lelis (Independente, 2018): Olhar para as magníficas aquarelas de Lelis, em qualquer HQ de sua vasta obra como ilustrador, é o suficiente para incluí-lo em listas de fim de ano. Porém, um trabalho 100% autoral do quadrinista mineiro é mais raro, e Anuí funciona como síntese de seu imaginário: história curta, contada em grandes quadros riquíssimos de beleza impressionista, e um apelo interiorano (busca pelo caipirismo) que se fia em sentimentos amorosos e sutis. Anuí tem fortuna poética e textual, contando a história de uma garota que não consegue abrir sua caixa de música em forma de coração. Os desdobramentos são singelos, até no limite do piegas, mas funcionam como um forte livro ilustrado para todas as idades.
6 – Soco! Volume 2 – Billy Soco no Inferno – Gabriel Góes (Cosmos, 2018): A mente de Góes é aloprada, sem muita linearidade, ao mesmo tempo senil e infantil. Seus quadrinhos autorais se engajam num experimentalismo torto que confunde propagandas de produtos toscos dos anos 1980, heróis de animes antigos, bonequinhos de personagens (antes de chamarem de toys) e um domínio absoluto na arte de narrar simultaneidades, atrocidades e malabarismos metalinguísticos. Billy Soco, o seu improvável super-herói, vive a realidade de um Astro Boy derretidão, e tudo aqui (desta vez ele vai a um inferno bem sui generis) lembra bad trips da pesada. Arte punk/pop, meu amigo, que merecia mais destaque no nosso quadrinário nacional. Aguardemos os outros zilhões de volumes prometidos pelo autor.
5 – Óleo Sobre Tela – Aline Zouvi (Ugra, 2018): Aline Zouvi vem galgando espaço no quadrinho nacional através de uma arte hipercarismática, com pleno domínio da forma, sem precisar de muito verbo para causar profunda impressão poética (coisa rara em HQs). Eu já havia ficado estarrecido com seu Síncope, um exímio trabalho de formas e cores vencedor do prêmio Dente 2018. Em Óleo Sobre Tela – um gibi curtinho lançado pela série Ugrito –, porém, ela alcança novo patamar artístico ao fazer uma leitura para lá de lírica sobre o pintor Magritte (sem ser metida a besta), refletindo sobre afetos contemporâneos, identitarismo, o espaço museográfico e a capacidade de expressão da arte em si. Nada mau para um quadrinho mudo de 10 páginas.
4 – Dinâmica de Bruto II – Bruno Maron (Maria Nanquim, 2018): É difícil escrever sobre Bruno Maron. Por mais que a gente se esforce, sempre parece que ele está uns 10 passos na nossa frente. Cada desvio de pseudointelectualidade pedante pode se voltar contra você, vítima do arsenal debiloide e de erudição farsesca desse autor zé-ruela. Enfim, quem já se deparou com uma tira de Maron na internet sabe que ele satiriza o zeitgeist do “Brasiu” contemporâneo sem aliviar para ninguém. Suas paródias de discurso intelectual e acadêmico são tão bem-feitas que eu tenho certeza de que ele poderia escrever artigos científicos de humanas estilo Sokal e ser aprovado em várias revistas (ruins) por aí. Dinâmica de Bruto II compila seu trampo de 2013–2017 e é um dos mais inteligentes relatos sobre o glitch na realidade que virou o nosso país desde então. Serião, isso deveria ser estudado nas escolas (agora, num universo reverso).
3 – A Revolução dos Bichos – George Orwell e Odyr (Cia. das Letras, 2018): Este é um trabalho realmente capaz de levar lágrimas aos olhos. Revisitar esta obra-prima de Orwell de acordo com a lente expressionista, em tinta acrílica, do grande Odyr Bernardi, é um privilégio que não deve ser contido apenas ao âmbito nacional. A caprichada edição da Cia. das Letras valoriza o trabalho incisivo de adaptação de Odyr para a macabra fábula que satiriza a revolução russa e os tentáculos do socialismo real da União Soviética – além de servir de metáfora a todo totalitarismo salvacionista. O artista é econômico: destaca poucas e pontuadas falas, carrega na variação cromática do pincel e comprime a história com exatidão, extraindo o suco de seu impacto maior. Poderia ser o livro infantil que revela uma verdade universal.
2 – Cidade de Sangue – Julio Shimamoto e Márcio Jr. (MMarte, 2018): Julio Shimamoto, pedra fundamental do quadrinho brasileiro, retorna com um romance gráfico de luxo aos 79 anos de idade. Faz retomar a fé na humanidade, não? Isso se o dito romance gráfico não fosse um atestado pútrido do completo decaimento da sociedade brasileira! Um noir à moda antiga, imoral e violento, demônio solto como eram aquelas inconsequentes histórias de horror brazuca dos anos 1960, 1970 e 1980. Muito disso se deve à imensa erudição quadrinística do roteirista goiano Márcio Jr., que intencionalmente procurou revisitar essas páginas esquecidas da história da HQ brasileira. De quebra, Shima ainda ilustra com ferro de solda sobre papel de fax, dando um aspecto rústico aos seus já angulosos desenhos. Cidade de Sangue é diferente de tudo que se faz no quadrinho brasileiro contemporâneo: tem espinhos, tem força bruta. Dificilmente veremos algo igual em pouco tempo. Mais aqui.
1 – O Idiota – André Diniz (Cia. das Letras, 2018): Eu já escrevi sobre este quadrinho aqui e aqui. Não quero me repetir mais. Basta ressaltar a coragem e o ímpeto de transcriação que Diniz, um dos melhores quadrinistas nacionais, investiu ao transformar a febril verborragia dostoievskiana em um volume de 400 páginas quase inteiramente mudo, numa linguagem que lembra vertiginosas xilogravuras. Pouco foi feito, em 2018, que se equipare a este esforço. Para se ter uma ideia, Diniz se junta aqui a Akira Kurosawa como artista que foi capaz de reinventar (na vera) o grande autor russo. Number one!