Odeio filmes de zumbi, mas adoro George A. Romero
“A Noite dos Mortos-Vivos”, primeiro filme do diretor, ainda é uma das maiores obras-primas do cinema
atualizado
Compartilhar notícia
Não sou de fã de filmes de zumbi. Acho que tudo que era transgressor nessa ideia (reformulada por George Romero) foi transformado em um produto histérico e vazio, um meme, uma commodity. Tampouco fico impressionado com os mais moderninhos e descolados (“Extermínio”) ou os hiper-realistas (“Invasão Zumbi”).
Obviamente, também acho assistir à repetição eterna de “The Walking Dead” um martírio. Nem mesmo a maioria dos longas de Romero eu acho grande coisa. Porém, ironicamente, penso que a sua estreia, “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), é a melhor fita de terror de todos os tempos.
“A Noite dos Mortos-Vivos”, por outro lado, é um filme de sutilezas, cheio de recursos do então jovem “cinema moderno”. Pode-se dizer que aspira à arte e reflete sua época. Nesse sentido, aproxima-se mais de “Sombras” (John Cassavetes) e “O Beijo Amargo” (Samuel Fuller) do que de “Resident Evil”.
Romero filmou “A Noite dos Mortos-Vivos” com um orçamento minúsculo (US$ 144 mil), em (então já quase abandonado) preto-e-branco, criando forte contraste entre as duas cores. Uma forma de refletir as outras contradições e paradoxos que o filme discute. Apesar de pertencer a uma segunda onda de fitas verdadeiramente independentes do cinema americano (estando dentro do contexto da “Nova Hollywood”), nada parece amador.
O filme é pensado em ângulos oblíquos e inusitados. Editado com perfeito propósito narrativo. Romero alinha cenas dinâmicas, tensas e claustrofóbicas à trilha (à la Bernard Herrmann, que musicava os filmes de Hitchcock) de William Loose. O resultado é, até hoje, de derreter o cérebro. Sempre gosto de pensar que um longa de terror deve ser aterrorizante em sua linguagem, e não necessariamente em seu conteúdo.
“A Noite dos Mortos Vivos” é um dos únicos filmes de terror que bebe diretamente da linguagem moderna. Os inserts à maneira de Eisenstein, a mise-en-scène estilo Cassavetes, a violência psicológica dos primeiros trabalhos de Roman Polanski. Tudo isso converge para uma sofisticação que o gênero splatter raramente exploraria no futuro.
E o conteúdo do filme não é menos impressionante. Ele lança os termos do zumbi moderno: pessoas aleatórias confinadas numa casa de fazenda; a praga ocorre aleatoriamente; e o conflito entre os sobreviventes e não entre os mortos. Porém, além de deflagrar a mitologia da coisa, Romero entendeu, com finíssima ironia, a tensão social da época.
Ben (Duane Jones), um homem negro, é alçado à condição de herói, sobrepujando escroques e lunáticos. Mesmo assim, termina morto “por acidente” por rangers caçadores de zumbis no estado da Pensilvânia. As imagens finais lembram o filme feito de fotografias de Chris Marker, “La Jetée”: as fotos, em intenso granulado, vão nos mostrando como o protagonista é recolhido, juntado a uma montanha de mortos-vivos e incinerado, como nos tempos da KKK. A semelhança entre discurso deste filme e o de “Sem Destino” (ícone da “Nova Hollywood”) não é mera coincidência.
Por fim, os zumbis. É claro que é preciso falar deles. Romero já os pensa com ironia desde a primeira cena, quando (apropriadamente), em um cemitério, o rapaz que finge perseguir a irmã sendo um monstro se torna a primeira vítima do filme. Há, claramente, a noção de que os mortos-vivos são uma metáfora, diferentemente das produções atuais. Mas isso não os torna menos assustadores.
Eles não têm afetações: são discretos e, ao mesmo tempo, absurdos, inexoráveis. Vão crescendo em escala de grotesco até que, quase sem percebermos o percurso, presenciamos um garotinha devorando o pai e a mãe. O diretor nos entrega isso como se fizesse poesia a partir de carne podre.
Romero foi um diretor irregular, mas a grandeza de “A Noite dos Mortos-Vivos” o coloca na posição dos poucos realizadores que chegaram à autoralidade (e aí entram Mojica, Dario Argento, Tsukamoto, entre outros) por meio do terror. Divisor de águas, ele sempre procurou algum tipo de reflexo humano e social em seus filmes, mas os estereótipos do gênero acabaram ficando maiores do que ele. Seu primeiro longa, no entanto, ultrapassa todas essas questões e se mantém intocável como pedra bruta do cinema moderno.