“O Maestro, o Cuco e a Lenda” é uma pungente reflexão sobre a memória
Segundo romance gráfico de Wagner Willian funciona como uma onírica visita ao passado
atualizado
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Como diz a letra de uma música para lá de intensa do grupo americano Of Montreal, “O passado é um animal grotesco. E, através dos seus olhos, você vê o quão completamente errado pode estar”. E é justamente essa visão do tempo transcorrido por meio dos olhos desse ser o que propõe o quadrinista potiguar (residente em São Paulo) Wagner Willian em seu novo romance gráfico: “O Maestro, o Cuco e a Lenda”.
O tema surpreende, já que o trabalho anterior do autor, o premiado “Bulldogma” (2016), passava-se em um presente mais radical. Ali víamos uma leitura da vida urbana paulistana e dos hábitos de uma jovem classe adulta com forte afetação pós-moderna. O livro arrebanhou prêmios e entrou (sem pedir licença) diretamente para o cânone dos quadrinhos brasileiros.
“O Maestro, o Cuco e a Lenda”, publicado no final de 2017 pela editora Texugo (do próprio autor), invade o meio rural e as reminiscências da infância. Se, no livro anterior, Willian colocava como alter-ego uma jovem hipster, aqui é pelo olhar de uma criança (portanto, não tão longe do animal da música) que a experiência do escritor se apresenta.
Wagner Willian é um autor erudito, e seu leque de referências aparece tanto na cumplicidade com autores (de Jiro Taniguchi a José Lins do Rego e Fellini) quanto em citações diretas. Na nova obra, esse arranjo de leituras é orgânico e serve à história. O escritor busca a simplicidade, narrativa e conceitual, e deixa as emoções aflorarem.
“O Maestro, o Cuco e a Lenda” é uma espécie de versão “Chico Bento” para “Alice no País das Maravilhas”. Aqui, o alter-ego do autor, já adulto, após a morte de um excêntrico avô-maestro, precisa vender uma casa de fazenda (dos tempos da produção cafeeira e escravocrata do século 19) na qual tinha passado a infância. Sem muitas explicações, como num passe de mágica, ele regride à sua forma infantil e passa a revisitar fantasmas vividos naquele lugar. Inicia-se, então, uma série de desventuras surrealistas e macabras.
O “mea culpa” que o autor faz nessa revisita dolorosa – em cima de traquinagens graves, acidentes e até sobre os escravos antepassados – acende também as memórias do leitor, capaz de trilhar igualmente sua própria mitologia infantil. E é nesse olhar autocrítico pós-moderno que “O Maestro, o Cuco e a Lenda” encontra eco em “Bulldogma”. Independente do ambiente de suas histórias, Willian é um quadrinista preocupado em pensar a ética e a estética do presente.
Outro elemento que aproxima as duas obras é o fantástico ou sobrenatural (sempre metafórico – ou quase), transfigurado nos eventos ufológicos em “Bulldogma” (mais apropriado à garoa de Sampa) e nas lendas folclóricas aqui. A metáfora do cuco – o pássaro invasor de ninhos alheios – vai ganhando densidade a cada representação na trama.
O clímax ocorre quando o avô-maestro explica que, por ser tão vil, o cuco foi aprisionado dentro do relógio e condenado a cantar apenas duas sílabas. Ainda maldoso, o pássaro acabou ficando encarregado de nos avisar sobre cada hora perdida – uma linda parábola sobre a preciosidade do tempo.
Isso me lembra uma afirmação do cineasta Mário Peixoto, responsável pela maior obra-prima do cinema mudo brasileiro (“Limite”). Obcecado com a angústia gerada pelo passar do tempo, ele dizia que o relógio nos mostrava o esgotamento de nosso tempo no mundo: “menos um, menos um, menos um”.
Assim, com “O Maestro, o Cuco e a Lenda”, Wagner Willian se junta a outros autores brasileiros (de mídias diversas), como o próprio Mário e Clarice Lispector, capazes de produzir uma reflexão original e pungente sobre o rio corrente que é a vida, e as consequências de se atravessá-lo. Se o passado é um animal grotesco, o presente é um ser agonizante.