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O Idiota, de Dostoiévski, ganha espetacular adaptação para as HQs

André Diniz levou a história do escritor russo ao mundo dos quadrinhos

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O escritor russo Fiódor Dostoiévski sofria de epilepsia e esse fato, assim como várias outras anedotas biográficas, foi central para a constituição de sua literatura. Em O Idiota, publicado entre 1868 e 1869, a epilepsia do “príncipe” Liev Míchkin serve como fio condutor e metáfora que deglute todos os enganos da Rússia do século 19, uma sociedade aristocrática, injusta funcionando à base de instituições corruptas.

O Idiota é um livro monstruoso (em vários sentidos), com mais de 600 páginas de densa e paranoica prosa dostoievskiana. Qualquer um que se arrisque a adaptar o romance para outra mídia precisa, assim como o próprio autor russo, colocar na obra algo de si próprio. Essa inspiração e coragem (imagino) motivaram o veterano quadrinista carioca André Diniz à sua mais robusta empreitada: O Idiota – O Clássico de Fiódor Dostoiévski em Quadrinhos, da Companhia das Letras.

André Diniz/Reprodução

 

Diniz poderia ser elogiado pelo simples empenho em adaptar um autor excessivamente verborrágico – e com intensa capacidade de elaborar pensamento dissertativo e abstrato – para a arte mais concreta dos quadrinhos. A obra do brasileiro, no entanto, supera qualquer expectativa: tascou um novo catatau (400 páginas) quase inteiro sem falas ou palavras (um “quadrinho mudo”) baseado singelamente na articulação precisa de poucos quadros em cada página.

O resultado é a verdadeira “transcriação” (como diria Haroldo de Campos): a tradutibilidade de uma língua para outra (ou de uma mídia para outra) requer nova autoria e uma refundação da obra original sob novas bases. O tradutor, para interpretar uma obra poética, precisa também ser poeta, e o que se transfere é o ímpeto da criação em si. O próprio O Idiota respira profunda intertextualidade com outro dos grandes romances monumentais da humanidade: Dom Quixote, de Cervantes.

André Diniz/Reprodução

 

Assim, uma obra que um leitor normal levaria seis meses para ler pode ser devorada, nos quadrinhos, em apenas algumas horas. Com inspiração no cordel, na xilogravura e na arte expressionista (tão adequada a Dostoiévski), Diniz vai compactando as situações do livro em sequências voláteis e dinâmicas, com intensa performance de olhar e sutis movimentos capazes de traduzir a eloquente e fanática prosa do autor russo.

Igual a um filme mudo, as palavras servem apenas como letreiros para desfazer detalhes ambíguos da trama. Por vezes, porém, a voz é substancial: “A execução de um criminoso é um crime mais grave do que o crime cometido por ele”, afirma Míchkin após se recordar de ter presenciado a morte de um bandido na guilhotina. Essa cena retrata a compaixão estupefata do protagonista da história, tratado por todos justamente como um inapto incapaz de contribuir com a sociedade.

A história de O Idiota é muito conhecida: Míchkin sai de um sanatório onde tratava sua epilepsia e encontra os últimos membros remanescentes de sua família. Dentre eles, está Nastácia Filíppovna, uma jovem adotada de personalidade irascível e estigmatizada cruelmente por ter relações livres com homens diversos, algo imperdoável numa era vitoriana. As tensões entre esses arquétipos opostos são o combustível da história.

Os desenlaces entre outros personagens, permeados por temas típicos do autor (religião, morte e moral), seguem a cartilha, de certa forma folhetinesca, da literatura do século 19: os eventos vão tomando proporções sinistras e catastróficas na medida em que esses impasses entre indivíduo e sociedade revelam-se cada vez mais insolúveis. No traço “amigável” de Diniz, personagens realistas ganham matizes de degenerescência e suas vidas vão se tornando cruéis sucessões de erros.

Como bem se sabe, Míchkin, o “idiota”, é o personagem mais sensível e são do romance. Sua fragilidade diante de instituições predatórias (casamento, trabalho e igreja), somada a uma incompreensão sobre a natureza da epilepsia, o torna vago, perdido, fiel aos seus bons valores.

Não à toa, o “idiota” do título carrega uma ambiguidade: refere-se a como antigamente eram chamados os doentes mentais e, ao mesmo tempo, identifica pessoas quixotescas que procuram enfrentar a sociedade sozinhas. Nesse sentido, o romance de Dostoiévski jamais perderá sua atualidade. Nunca houve tantos idiotas autoindulgentes e perversos quanto no mundo atual. Porém, ainda há alguns ingênuos como Míchkin, ousados o suficiente para questionar a ordem das coisas.

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