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Mangá: dois lançamentos consolidam o gênero japonês em Brasília

HQs Shoujo Bomb e Flyp mostram que, aos poucos, a vertente oriental ganha força no Distrito Federal

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1 de 1 Metropoles_mangá_CAPA_BANNER - Foto: Divulgação

Recentemente tive a oportunidade de visitar uma extraordinária exposição sobre mangá no lendário British Museum, em Londres. Em meio a estátuas egípcias de Ramsés II e esculturas em alto relevo da caça aos leões babilônios, fui capturado pelo legado desta forma de arte em quadrinhos que os japoneses transformaram em um gigantesco fenômeno global. Das origens em pinturas de estampas ukiyo-e, à influência de artistas como Hokusai, até à chegada de jornais ocidentais com charges e caricaturas no século 19, levando aos (irreconhecíveis) primeiros quadrinhos japoneses e depois à sua modernização com o mestre Osamu Tezuka, havia de tudo ali, pronto para maravilhar um público leitor de quadrinhos ou não. Estava posta a essência de um evento mundial que ia muito além de uma mera cultura de nicho.

Por exemplo, podíamos abordar as bibliotecas de mangá e locadoras 24h, dispostas como instalação na exposição. Também havia uma parte dedicada aos animes – a altamente idiossincrática forma japonesa de produzir desenhos animados -, ao fenômeno do cosplay, das
convenções, dos brinquedos e de vários dos infinitos subgêneros de mangá: terror, ficção científica, esportes, eróticos, fantásticos, para garotos adolescentes (shonen), para jovens adultos (seinen), para garotas adolescentes (shoujo). O leque é inesgotável. Segundo o que consta nos registros do especialista Paul Gravett, produz-se mais mangás no Japão do que todas as outras indústrias de quadrinhos somadas. Lá, lê-se mangá em qualquer circunstância: para se informar sobre política, para dar instruções procedimentais, para todo tipo de lazer e convivência social.

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Nessa exposição, pude travar contato com originais de artistas lendários do quadrinho japonês. Não só Tezuka, mas também Yoshihiro Tatsumi, Akira Toriyama, Jiro Taniguchi e Junji Ito. A maneira revolucionária com que esta linhagem de artistas transformou os quadrinhos e a cultura do ocidente em geral não cabe nestas humildes linhas. Basta dizer que concepções de espacialidade, dinâmica e narrativa nos quadrinhos foram modificadas para sempre por aqui. Isso sem falar na ousadia dos temas e abordagens.

Porém, o propósito deste texto não é focar na exposição, e sim sugerir a grandeza do universo do mangá – com seu tsunami cultural invadindo cada fresta da nossa sociedade – como ponto de partida para se pensar a produção brasiliense deste gênero. Dois lançamentos recentes, um do final de 2018 e outro que acaba de sair, dão a letra para uma cena que começa a se consolidar. Ambos conseguiram ser publicados por meio de plataformas de financiamento coletivo.

Shoujo e Seinen na capital

Shoujo Bomb, organizado pela quadrinista de Brasília Renata Rinaldi, não é inteiramente local (tem colaboradoras de vários lugares), mas concentrou sua produção por aqui, e é um projeto bastante original: reunir quadrinistas brasileiras que trabalham especificamente com o gênero shoujo e publicar um livro completo dentro desse enquadramento.

Na verdade, o shoujo não é especificamente um gênero. A maioria das pessoas pensa que ele se limita a histórias “tolas” de garotas apaixonadas e garotos delicados em idade escolar. Porém, sem definir um ambiente fixo (pode haver shoujo de fantasia, humor, esportes, etc.), ele se caracteriza mais como uma demografia: é feito por mulheres, para mulheres jovens, tweens, na pré-adolescência e um pouco
adiante.

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A qualidade editorial de Shoujo Bomb é excelente: a capa é linda, colorida com brilhos que adornam as personagens principais das histórias reunidas, e ainda há uma jaqueta elegante e descontraída, com as mesmas garotas voando num céu róseo-púrpura. O livro compila seis contos em quadrinhos de autoras diferentes, quase todas fugindo do estereótipo escolar e buscando jornadas de autoconhecimento e transformação para essas meninas, como se se endereçasse a jovens mulheres que precisam aprender a reconhecer seu potencial interior e lugar na sociedade.

Não sou o público-alvo destas histórias, mas me comove a variação dos estilos, sempre enquadrados ao mesmo tempo na delicadeza e na altivez do shoujo, buscando afirmar essas experiências femininas, cristalizadas em guerreiras, esportistas, fadas, deusas. Em comum, estas
artistas compartilham uma infância lendo clássicos do shoujo, como Sakura Card Captor, Sailor Moon e As Guerreiras Mágicas de Rayearth.

A ótima introdução, da Professora Doutora Sonia Luyten, dá parâmetros para a importância desta publicação: “As desenhistas brasileiras, até pouco tempo atrás, tiveram pouca chance de entrar no mercado de quadrinhos. Não que fossem incapacitadas. O que não havia era um segmento de quadrinhos no plano editorial brasileiro, como há no Japão, para as adolescentes femininas se identificarem, e a vinda do mangá começou a formar novas leitoras.”

Dentro das semelhanças destas abordagens, há variações: Renata Rinaldi desenha com extrema fofura. Seus quadrinhos têm um “jeito moleque”, e sua história recria as origens do jogo de Bete (o “beisebol das ruas”), buscando pluralidade na competição entre meninos e meninas. Gostei também do apelo onírico, com inteligente enfoque na busca pela autorrevelação, da artista de Maceió Mari Petrovana, que ilustra com mais detalhamento, realismo e elaboração. Já a história de “bruxaria do bem” de Cah Poszar tem estilo mais anguloso e sombreado, com linhas mais espessas e forte caracterização das personagens. Em geral, Shoujo Bomb serve como um belo passaporte para jovens garotas entrarem no mundo dos quadrinhos.

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Por fim, gostaria também de me deter sobre a série Flyp, do roteirista Lucas Cangussu e do desenhista Henry Schumann, uma publicação de Brasília lançada no final de 2018 e que segue em campanha de divulgação. E, de fato, este trabalho tem um acabamento fino, que merece mais leituras.

Apaixonados por narrativas de RPG, games de mundo aberto e fantasia em geral, estes dois oferecem aqui o casamento perfeito entre uma arte sofisticada, cheia de sombreamentos, expressões e matizes em preto-e-branco, e um roteiro (mais puxado pro seinen, ainda que mangás não sejam a única referência dos autores) carismático, com personagens bem escritos, com diálogos elaborados e curvas de desenvolvimento equilibradas. Jornada do herói no talo, com apurado senso de aventura.

Flyp conta a história de uma jovem gata que vive em um reino onde habitam muitas espécies. Seu sonho é se tornar um cavaleira-paladina, mas um decreto real diz que cada animal deve trabalhar com suas aptidões naturais, e gatos não podem se tornar paladinos nesse contexto.
Segue-se então uma aventura de autodescoberta com tons sombrios e revelações, narrada de forma dinâmica e contagiante. Lucas Cangassu e Henry Schumann deixam claro que, sendo este apenas o primeiro volume da saga, têm potencial para se tornarem um clássico brasiliense. Suas influências, apesar do parentesco com o mangá (especialmente Holy Avenger), se estendem a Bone e Disney. O caminho para o futuro está pavimentado.

É um clichê afirmar que o kanji da palavra mangá quer dizer “imagem irresponsável”. No século 19, um mangá era um rascunho livre. A “irresponsabilidade” residia na liberdade de poses e temas retratados. Hoje, podemos dizer que essa irresponsabilidade e liberdade se espraiam como um dos fenômenos culturais mais vigorosos do mundo. Brasília ainda engatinha na adesão a essa cultura. Porém, há esporos eclodindo aqui e ali. Max Andrade e Lucas Marques são outros autores que pretendo abordar futuramente. Até lá.

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