Luto nas HQs: os legados de Ditko, Vance e Ribera
Trabalhadores árduos, com décadas de produção, vão morrendo, e lendas vão surgindo com um legado muito volumoso de obras
atualizado
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O mundo das HQs ficou intensamente abalado com o recente falecimento do imenso Steve Ditko, criador do Homem-Aranha e do Doutor Estranho, além de atuante e inquieto quadrinista no mercado americano até os anos 2000. Discreto (nunca dava entrevistas), racional e misantropo, Ditko foi um inventor de imaginários, um dos mais extraordinários contribuidores para os quadrinhos terem se tornado a mais tresloucada e delirante das formas de arte. Escrevi minha própria e pessoal despedida ao grande desenhista aqui.
Porém, Ditko não foi a única grande perda que tivemos este ano no campo dos quadrinhos. Aos poucos, o panteão dos grandes gênios clássicos desta estupenda forma de expressão aumenta suas fileiras. Trabalhadores árduos, com décadas de produção, vão morrendo, e lendas vão surgindo com um legado muito volumoso de obras. Nos últimos 10 anos, perdemos nomes como Moebius, Shigeru Mizuki, Sergio Bonelli e Bernie Wrightson.
Em 2000, perdemos Charlez Schulz. Neste ano, foi-se o excepcional roteirista francês Frank Girou, autor da monumental Decálogo e também de dezenas de outras séries, entre faroestes, policiais e textos históricos, em quase 40 anos de publicações. No Brasil, tivemos de lidar com a precoce perda do roteirista Carlos Patati. Também cineasta, professor e escritor, ele trabalhou longamente com sua fervilhante paixão pelos quadrinhos. Escreveu para as revistas Spektro, Pesadelo e a Heavy Metal brasileira, além de romances gráficos como o recente Couro de Gato, sobre a história do samba, ilustrada por João Sanchez.
Maio de 2018 foi particularmente cruel para os quadrinhos e gostaria de me fixar aqui. Dois retumbantes ilustradores do mercado da bande dessinée (BD) europeia, o belga William Vance e o espanhol Julio Ribera, se foram no intervalo de poucos dias. Vance tinha 82 anos e se aposentara em 2010, devido ao mal de Parkinson. Ribera publicou sua última HQ em 2013, e morreu com 91 anos. Ambos produziram por mais de 50 anos e ficaram marcados por séries clássicas e longas, verdadeiros monumentos da nona arte.
O gênio da ilustração fotográfica
William Vance foi um dos mais preciosistas ilustradores das escolas realistas de quadrinhos. Seu estilo é tão fotográfico e minucioso que é possível contar as folhas secas caindo de uma árvore numa revoada, ou os parafusos no capô de um jipe de guerra. Não à toa, fez parte do ápice destes gêneros fundamentais em BD nos anos 1970 (históricos e faroestes, por exemplo), publicando títulos populares como Ringo ou Roderic. Seu estilo, bem “macho alfa”, no entanto, combinava mesmo era com histórias de espionagem com modelos de masculinidade inspirados em James Bond. Ilustrou 11 álbuns de Bruno Brazil e inacreditáveis outros 18 volumes de Bob Morane, popularíssimo na França.
Porém, como qualquer leitor de BD sabe, o grande êxito de Vance foi a série XIII, escrita pelo grande roteirista Jean Van Hamme (também belga), um dos clássicos imortais dos quadrinhos europeus. Esta série, iniciada em 1984 e finalizada em 19 álbuns, foi 18 vezes assinada por Vance (a outra foi ilustrada simplesmente por Moebius). Com uma temática parecida com o romance estilo “tromp l’oeil” de Robert Ludlum (A Identidade Bourne), XIII conta a história de um homem altamente treinado, verdadeira máquina mortífera. Ele perde completamente sua memória e vai se envolvendo num lamaçal infindável de investigações que o levam a malas com milhões de dólares, presidentes assassinados e à situação de não poder confiar em absolutamente ninguém.
O sucesso deste quadrinho de investigação policial e de mistério se deve muito, é claro, ao intrincado roteiro de Van Hamme, sempre com erudição, referências literárias e recordatórios eximiamente bem escritos. A trama é um labirinto de surpresas e obedece muito ainda a um imaginário setentista, tipo filmes americanos como Perdidos na Noite, Cada Um Vive Como Quer e Operação França.
Vance, porém, abrilhantava em muito a sórdida trama à la Dirty Harry com quadros enormes, carregados de informação visual obsessiva, que compensava, com tipos humanos muito reconhecíveis, o minimalismo (um tanto quanto direto) da narrativa. Sua escola vinha, é claro, tanto de americanos old school como Wally Wood e Joe Kubert, quanto de mestres da linha clara do quadrinho europeu, como o pai da BD de espionagem belga, Edgar P. Jacobs. A morte de Vance sela talvez o fim de todo um ramo evolutivo dos quadrinhos. Nove números de XIII foram publicados no Brasil pela Panini entre 2006 e 2007.
O mestre dos sonhos interdimensionais
Já Julio Ribera aventurou-se intensamente num tipo muito específico de ficção científica altamente delirante e fantasiosa, na inacreditável série de 31 volumes O Vagabundo dos Limbos (Le Vagabond des Limbes). Mesmo que ele tenha ilustrado para inúmeras publicações (como Tintin e Pilote) durante a vida, foi com esta bizarramente idiossincrática space-opera que ele consagrou seu estilo clean e ao mesmo tempo art nouveau, influenciado por desde Harold Foster até pela épica arte sci-fi dos anos 70.
O Vagabundo dos Limbos teve uma forte reverberação em mim há alguns anos. A série, escrita pelo também heroico roteirista Christian Godard (conhecido em alguns nichos muito estreitos como o “Godard dos quadrinhos”) conta a história de Axle Mushine, viajante que atravessa dimensões paralelas para encontrar sua musa Quimera, sempre acompanhado por seu sidekick não-binário Musky, um imortal de 300 anos preso no corpo e na mente de um adolescente de 13.
Esta série é um gracioso sonho romântico pensado para o imaginário lisérgico dos anos 70, e além. A diversidade de criaturas e a beleza da flora criados por Ribera, além de figurinos excêntricos e uma frutífera mistura de gêneros (da cavalaria medieval aos épicos transcendentais de Michael Moorcock), fazem de O Vagabundo dos Limbos um quadrinho incontornável para se compreender a obsessão contemporânea pela space-opera. Sua linhagem é a da série Valerian, do Dreadstar de Jim Starlin, do Lone Sloane de Druillet, ou no tom levemente filosófico no Thanos dos filmes de super-herói.
Para escrever este obituário-homenagem, ainda peguei para ler uma segunda série interessante produzida pela dupla Godard-Ribera. Trata-se das Crônicas do Tempo do Vale das Ghlomes (Chroniques du temps de la vallée des Ghlomes), publicadas em quatro volumes entre os anos 1980 e 1990, que leva o surrealismo pancada e a lisergia do Vagabundo para limites, digamos, jodorowskianos. Aqui, sociedades de anões lascivos travando guerras com pernetas movidos a poções mágicas e deuses invisíveis são observados por um cavaleiro e um pajem medievais.
A arte do espanhol nos Ghlomes pode não estar tão gloriosa quanto nas cores frias do Vagabundo, mas a ousadia do texto e a limpidez e carisma das ilustrações me levam a pensar em quantos Riberas e Vances ainda existem para nos deixar e no quão inesgotável de talentos escondidos é a arte dos quadrinhos de todos os tempos. O século 20, nesta forma de expressão, acaba muito com a morte destes importantes protagonistas. O Vagabundo dos Limbos nunca foi publicado no Brasil.